Na literatura, Zeus é representado como um deus criado. Ele nasceu e teve uma infância como qualquer humano, como nós. É na filosofia e na teologia que ele ganha uma origem incriada. Pensar na lógica do acontecimento é adentrar no campo da leitura dos eventos, mas deixando de lado a atribuição de uma causalidade precisa. Chamamos isso de contingência, o acaso, um conjunto de pequenas situações que fundamentam um acontecimento.
Nós, humanos, temos uma inquietude em relação aos acontecimentos, desejamos a tudo explicar. Por explicação, entendemos o discernimento das causas, das operações e de seus resultados, escrevendo um equacionamento lógico que acalme nosso não saber através da criação de um saber racional. Esquecemos, no entanto, que somos fundados pela linguagem, mas não pela racionalidade. A linguagem porta em sua estrutura a capacidade de reconhecer o inexplicável, classificá-lo e ordená-lo, portanto a racionalidade é outro modo de leitura atribuído geralmente à natureza humana, mas até essa afirmação já é uma criação linguageira do humano.
Dizer-se racional é, antes de tudo, afirmar uma mitologia criada por nós mesmos. Afirmamo-nos seres de linguagem que é um traço fundamental do nosso funcionamento existencial. Falamos, mas não pensamos onde falamos. É depois que vem o pensamento explicar a fala que irrompe quase sempre sem controle.
Nossas mitologias são inventadas para estabelecer as histórias das origens, das criações. Sejam elas religiosas, filosóficas, biológicas ou genéticas, permanecem incompletas, cheias de lacunas, que preenchemos com nossas hipóteses e invenções. Nosso maior furo narcísico é enfrentar a incriação, a possibilidade de que existimos apenas por uma série de acontecimentos contingentes sem sentido, que não temos toda-linguagem para ler, reconhecer, discernir, compreender, atribuir razão.
Só ficamos tão obcecados com nossas origens, com a criação e o começo de tudo, porque acreditamos poder apaziguar nossa inquietude sobre a certeza do nosso fim. Inventamos tantos motivos e regras para ocupar nosso intervalo de vida que esquecemos, propositalmente, que não tenho absolutamente condições de nenhuma de determinar onde tudo começou e quando vai acabar.
As palavras que inventamos e os mitos que criamos vivem mais do que nossos corpos fadados a desintegrar. Em algum momento até as palavras vão desaparecer e os mitos vão mudar. Por isso, termino de escrever essas palavras e coloco um disco para tocar na vitrola. Inspiro o instante de vida em que existo e isso já é bom. Saúde!
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Incriação. Em: www.alineaccioly.com.br
