Quando eu era pequena, gostava de escutar as músicas que tocavam nos bolachões pretos que tínhamos em casa. Além de música, tinha também disco de contos de fadas. Nunca vou me esquecer do grito de uma das irmãs de Cinderela ao descobrir que o sapatinho trazido pelo príncipe cabia no pé da pobretona que morava com elas de favor. Eu tenho essa capacidade de guardar na memória os gritos de dor que escuto. Mas isso é outro texto.
Na casa do meu avô, a variedade de discos era maior e mais complexa. Lembro de Frank Sinatra, Johnny Mitchell, Nina Simone, Ray Conniff, dentre tantos outros clássicos do jazz e do blues. Meses atrás, meu pai trouxe de Duque de Caxias alguns dos discos dele que estavam guardados, mofando, já que ele não transmitiu a nenhum de seus filhos e netos o apreço pela música e pelas artes. Demorei meses pra ter coragem de mexer nos discos, emocionada. Essa semana tive coragem de olhar disco por disco, escutando cada um deles na minha vitrola. Foi emocionante, mas também cheio de ressentimentos.
Meu tio vendeu, desfez ou repassou os discos que eu mais aguardava receber. No mercado atual de vinil, discos bem cuidados e mais famosos valem uma grana. Logo, nenhum Frank Sinatra chegou. Quase nada chegou, pra ser bem sincera. Meu avô chamava os filhos de energúmenos e coisa pior, não me espanta o pouco apreço deles por seus bens materiais e afetivos. O que me espanta é o pouco apreço pelos afetos que vieram depois, como o laço que durante muito tempo tentamos construir entre tios e sobrinhos.
Por outro lado, recebi no mês passado uma caixa de disco de uma colega de trabalho. Os discos, além de terem sido bem cuidados, são desse tipo que valeriam uma fortuna nos dias atuais, mas tem um valor afetivo expressivo. Foi assim que voltei pra casa com a alegria de uma herança que eu nunca imaginaria herdar. De valores afetivos. Dos lugares menos improváveis.
Família é uma invenção contratual para manter bens e propriedades num mesmo grupo de pessoas. Isso aqui que só os discos contam é outra coisa.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) LP. Em: www.alineaccioly.com.br
