Durante anos fui disciplinada a sorrir por educação. Sorrir para não deixar o outro desconfortável. Sorrir de graça, mesmo que tudo esteja terrível por dentro. Sorrir com verdade, mesmo que tudo do lado de fora inspire a mentira. Sorrir para o abusador, para a violência, para o mal humor matinal. Sorrir para os pedreiros que enchem o saco, para a buzinada de um cara aleatório que me assusta no meio do caminho. Sorrir para as piadas horríveis que as pessoas fazem na festa. Sorrir para o comentário desconcertante e intimidador de algum parente distante. Sorrir para quem coloca a mão nas minhas tatuagens como se não fossem parte do meu corpo. Sorrir para a pessoa que quer me pagar menos dos meus honorários sem constrangimento algum. Sorrir para quem marca e não aparece. Sorrir para os convites perversos. Sorrir para a criança que chora na rua. Sorrir de graça como se o sorriso fosse uma oferta divina a um mundo que nos assassina todos os dias. Sorrir sem sentir graça alguma. Sorrir de nervoso.
Hoje eu quero desaprender a sorrir. Quero retirar a cortesia gratuita que passei quarenta e dois anos oferecendo pra qualquer um. Hoje eu quero desaprender a sorrir, pra roubar de volta o sorriso ofertado como se tivesse em promoção porque o gerente da loja mandou fazer. Quero desaprender a sorrir hoje, amanhã e depois. Porque meu riso não nasceu pra ser pura resposta a toda e qualquer demanda do universo. Porque nem acho tanta graça de nada e meu humor é peculiar. Porque, pra quem quero dar meu sorriso, sorrio com palavras.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Sorriso. Em: www.alineaccioly.com.br
