Martha Batalha e Caetano Galindo trocavam cartas semanais. O detalhe é que faziam isso como newsletter e durante meses recebemos em nossos e-mails as trocas de cartas dos dois escritores sobre todo tipo de assunto relevante e supérfluo na vida dos dois. As cartas eram uma troca entre amigos. Escritores, mantinham parte da temática em torno da literatura e das inquietações acerca da escrita – através das conversas sobre o cotidiano. Mas eram trocas de cartas entre queridos. Contavam das viagens, da vida, da rotina, do mundo.
Hoje recebi a última carta dessa troca. Eles tiveram encontros presenciais e perceberam ter perdido a espontaneidade nas trocas online. Acabaram caindo na preocupação de agradar os leitores, já que sabiam que eram lidos por muitas pessoas. Se escritores desse calibre caem na tentação de agradar o leitor em suas trocas de carta, imagina eu, reles mortal.
Em homenagem ao fim do tempo de trocas de cartas entre os dois (você ainda consegue ler o conteúdo antigo deles no substack), vou escrever uma carta para você, leitor. Sem me importar com sua opinião.
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Queride leitore,
Hoje acordei com dor nas costas. Tenho acordado com dor nos rombóides, na escápula. Às vezes fico tensa, dormindo, e costumo me encolher em posição fetal. Não percebo nada disso dormindo, apenas acordo e me percebo extremamente encolhida e com dores nos ombros e nas escápulas. Não, não é o colchão. É o corpo se defendendo de uma ameaça que não existe mais, que perdurou tempo demais para deixar memória muscular automática. Tem melhorado. Por isso, acordei pensando o que poderia ter disparado tal mecanismo de defesa antes de dormir e lembrei da tensão que tem sido escrever uma resenha de um livro de uma conhecida. Não cabe destrinchar nesta carta o motivo da tensão dessa escrita em particular, mas ao menos me assegurei de ter algum indício da defesa noturna. Me alonguei por quinze minutos e fui tomar meu café preferido.
Depois de atender a manhã inteira, sem intervalo, sai correndo para almoçar e seguir os atendimentos da tarde presencial, no consultório. Comi rapidamente, tão rápidamente que já não lembro o que. Lembro de ter comido dois do meu doce de leite favorito, os dois últimos do pote do restaurante, diga-se por sinal. O caixa me confortou dizendo que amanhã chegarão mais e eu sai sorrindo. Após os atendimentos da tarde, percebi ter esquecido de levar meus lanches da tarde e conclui que passaria fome antes do treino do final do dia. Estava tensa, porque hoje tinha um grupo de estudos que começaria imediatamente após o treino e esse tipo de aperto sempre me deixa tensa com atrasos. Odeio ter que fazer uma atividade já pensando na outra, parece que rouba o tempo das duas e não faço nenhuma direito. Dito e feito. Não sei se pelo estresse, pela pressa ou por qualquer outro motivo que acordou comigo desde a manhã dolorida na escápula, meu treino foi péssimo. Senti muita raiva. Sentir raiva não é qualquer coisa nesse treino.
Tenho feito um treino somático de movimento e calistenia, entre outras coisas, para tratar uma perda de mobilidade que tive, advinda de uma lesão no quadril. O treino de hoje foi desafiador, precisava aprender um movimento novo que implicava justamente essa região e não consegui fazer. Tentei variações de quatro possibilidades e fracassei em todas. Fiquei agitada, frustrada e não consegui concluir. Ainda bem que o estúdio estava anormalmente agitado hoje, véspera de feriado, de forma que as pessoas não prestaram muito atenção. Mas eu prestei atenção e a instrutora também. Foi a segunda vez que senti tanta raiva de um exercício. Essa raiva é um sinal importante no meu tratamento corporal.
Sai atrasada para o curso e demorei cerca de meia hora para me concentrar. Alguma coisa hoje não estava dando liga. A moça falava de Clarice e eu simplesmente parecia não concordar absolutamente com o que ela falava. Ela lia uma carta de Clarice à irmã e interpretava o texto com tiradas psicanalíticas. Achei selvagem. Achei que nada disso diz nada de Clarice. Achei invasivo o que a gente faz com as cartas dos mortos. Não se trata de ler, a invasão não está nesse plano. Cartas são feitas para serem lidas. O invasivo é utilizar-se da escrita de alguém que já esta morta para analisá-la. Fora isso, tem essa leitura heteronormativa de mulheres lendo mulheres, que abordam certa feminilidade que parece só pertencer ao clubinho das cis com vagina. Como se mulher fosse isso, ainda. Incômodos, muitos incômodos. Por isso mantive minha câmera desligada e abri um vinho, depois deitei na rede e terminei de assistir o encontro buscando alguma paz para tanto caos e desorganização pessoal.
O vinho trouxe a paz, que me redirecionou para os meus discos de vinil. Escutei Madonna, George Michael e Rodrigo Amarante. O disco do Rodrigo Amarante é vermelho e isso me irrita. Vinil bom é vinil preto. Coloridas são minhas roupas, quadros na parede, o céu. Algumas invenções só atrapalham. Os discos coloridos não tocam bem em todas as agulhas mais simples de vitrolas e isso me irrita. É, o vinho ajudou, mas a raiva se traduziu em irritação.
Meu filho chegou e contou do dia. Depois perguntou se tinha comida. Sentou perdido no chão da sala com sua namorada. Estão envolvidos com os treinos e a possibilidade de evoluirem nos grupos. Eu voltei pro vinil vermelho, pro vinho e pra irritação que a música de Amarante nomeia como ninguém: Drama. Drama. Como se fosse o chorume, o resto do lixo que apodreceu, já foi descartado, mas se transformou naquele líquido gosmento e fedido no fundo do lixo. Talvez por isso eu ainda tenha dor nas costas. Por causa do chorume. Porque tem dias que a gente precisa ter a coragem de Caetano e Martha e simplesmente se despedir dos leitores e seguir para a próxima escrita e para os próximos leitores. Se a gente perde esse tempo, apodrece e tem que lidar com o chorume.
Al
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Opiniães. Em: www.alineaccioly.com.br
