Olhos inchados

Acordei com os olhos inchados, como se tivesse chorando antes de dormir. Achei que poderia ser o vinho de ontem a noite e pouca água, mas tomei, precisamente, quatrocentos mls de vinho e quatrocentos mls de água. Acrescido ao inchaço dos olhos, lembrei ter acordado no meio da madrugada com muita dor nas costas, que não passou mesmo depois de trinta minutos de alongamento. Estranhei. Acordei com as mesmas dores e estou concluindo que talvez eu esteja doente, com alguma fragilidade biológica de vírus ou bacteria. 

O corpo fala, mas nos mantemos analfabetos de seus signos por quase toda a vida. Papagaios e palestrinhas de todas as áreas criam teorias para interpretarmos os sinais dados pelos nossos corpos e nosso erro é acreditar que a língua de milhares de corpos humanos falaria o mesmo idioma. Maria Ribeiro abordou essa temática na sua coluna semanal das terças em seu instagram. Ela disse que sempre foi muito atenta as manifestações do seu corpo e por isso tem acolhido a menopausa com carinho e pouco espanto. Invejei um pouco sua condição privilegiada de estudante. Passei a infância interrogando o meu corpo e o dos outros, mas no universo perférico onde eu vivia esse tipo de inquietação era constantemente desencaminhada. A gente tem mais o que fazer, diziam. Essas investigações são coisas pra quem tem tempo, outros diziam. Você não pode perder tempo escutando seu corpo falar de todas as dores que ele conta quando e proletário e periférico. Você só precisa levantar e seguir o dia de trabalho. Isso é um mérito entre os pobres. 

Hoje é dia do trabalho. Duvidei da minha memória, se é dia do trabalho ou do trabalhador. Minha dúvida não é ingênua, não sejam bobos vocês também. Esses dias uma amiga me disse que mudou sua descrição do gosto para os homens. Antes ela dizia que gostava de homens trabalhadores, agora ela entendeu que gosta de homens que trabalham. Esses pequenos detalhes na mudanca de um dizer revolucionam o dito. Acho uma merda termos um dia para nos orgulhamos de sermos proletários. Ninguém em sã consciencia tem prazer no proletariado. Essa categoria, inventada para nos classificar como trabalhadores, nos diferencia apenas pelo valor e pelo tipo de trabalho. Somos aglutinados porque só conseguimos viver se trabalharmos. Alguém por acaso já deu a chance de um proletário viver bem sem precisar trabalhar pra ver o que aconteceria com ele? Muitos continuariam a trabalhar, mas sem a obrigacão moral de serem trabalhadores, como categoria lógica e econômica. 

Trabalhar para colocar nossos desejos adiante não tem a menor semelhança com o trabalhador obrigado a ser proletário por condição de nascimento. Portanto, vamos enfrentar esse cinismo bobagento que carregamos de geração em geração, para não transbordamos em ódio e sairmos matando todos os herdeiros e super ricos do mundo. O corpo fala, mas o trabalho de aprender sua língua implica um sofrimento imenso, especialmente quando compreendemos sua língua e com ela nada podemos fazer, pois temos que seguir alienados a economia e ao sistema capital social que nos adverte, incessantemente, que e preciso trabalhar para manter a economia como ela é, ao risco do colapso social. O corpo fala e ele não diz as coisas que inventaram que ele quer dizer. O corpo fala e avisa, todo dia, que estamos morrendo, então, que é melhor viver logo, parar de perder tempo com dor e servidão. O corpo fala e nos embaraça. O corpo fala e faz poesia, arte, dança. O corpo fala e tem seu própria tipo de trabalho para viver. O corpo fala e tudo que ele diz é que nada dessa bobajada social faz sentido, a muito tempo.

Hoje eu acordei com os olhos inchados, como se tivesse chorado antes de dormir. Eu não chorei, porque nenhuma lágrima saiu. Mas talvez meu corpo tenha chorado pra dentro. Por dentro. Estamos em maio e já me sinto engolida pelo fluxo proletário de 2024. Em abril, o dinheiro deu apertado e mesmo assim me senti uma pessoa de sorte (mesmo não acreditando na sorte) porque ao meu lado vi amigas e amigos cujo trabalho não rendeu o necessário para o mês. O dinheiro faltou para muitos. Comemorei feliz meus quarenta e dois anos e por vinte e quatro horas não pensei na culpa pelo uso daquele dinheiro. Não pensei na falta que ele faria. Não pensei em muitas coisas. Meu corpo falou, mas eu só escutei o que consegui. Afinal, como elaborar todas as dores de um corpo que fala e chora, sem lágrimas, os impossíveis do mundo? Que percebe a ausência de sentido quando nos orientamos pelo amor e ele a tudo demole?

Hoje eu acordei com os olhos inchados, como se tivesse chorado antes de dormir. O corpo fala, manifesta-se. Mas a Madonna vai fazer o show da sua vida em Copacabana e logo estarei mais preocupada em lembrar as letras da sua música do que aprender mais um modo de traduzir meu sofrimento, ou melhor, minha língua. 

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Olhos inchados. Em: www.alineaccioly.com.br

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