Quando figuramos a vida como uma linha reta de acontecimentos sucessivos, costumamos pensar que ela poderia ter sido menos sofrida se soubéssemos o que viria depois. Esse pensamento falacioso serve momentaneamente como um afago nas dores que permanecem incubadas no presente.
Mas sabemos que há um engano nessa proposição. É justamente porque entramos num transe de dor e cegueira temporária que sofremos intensamente as dores das pancadas que tomamos, assustados, diante de certas tragédias pessoais e coletivas. Continuo gostando de pensar, com Cixous, que as pequenas tragédias pessoais precisam ser lidas juntamente com as grandes tragédias sociais.
No dia das mães, temos o deleite de comemorar as maternidades possíveis num mundo que faz de tudo para que essa relação seja construída no ódio e no desamparo. No entanto, no mesmo mês, enfrentamos a dor de centenas de pessoas assistindo a derrocada climática representada pelos diversos cadáveres que boiam na água suja do negacionismo político e econômico.
Não podemos sofrer menos quando somos arrebatados pelo buraco do acordo civilizatório. Choramos, afinal, não porque as chuvas levam toda a vida que centenas de pessoas, mas porque sabemos que essa tragédia foi assinada por mãos cujos nomes podem compor uma lista de abandono do pacto social em benefício próprio. Choramos e sofremos quando somos abandonados e violentados por nosso próprios vizinhos, familiares, amores – quando estes decidem romper com o acordo civilizatório que custa trabalho e economia psíquica a todos nós.
Choramos e sofremos porque não sabemos o que fazer com esse mal estar. Porque essas pessoas não são vilãs de novelas. Porque lembramos quando nós mesmos abandonamos silenciosamente esse pacto social e não sabemos o que fazer diante dos cadáveres que seguem submergindo das águas, como o regurgito de um planeta que grita estar em colapso.
Não, a vida não é uma linha reta de acontecimentos sucessivos. Mas a escrita das nossas decisões desenha um movimento, um caminho. E quando esses movimentos nos engolem, não há como escapar das mãos que nos emaranham nesses nós infinitos – as nossas.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Sul. Em: www.alineaccioly.com.br
