Morei numa casa que tinha uma mangueira enorme e lagartas a espera da metamorfose. Quase sempre eu queimava o pé pisando nelas sem querer, brincando sozinha de correr. Mas eu não sentia tanto a dor do pé queimando. Eu já queimava desde a casa da morrão. Sentia raiva, muita raiva. Meu ódio não tinha lugar, então eu voltava minutos depois com álcool e fósforo. Observava-as se contorcendo no fogo, até morrer. Eu tinha sete anos.
Foi isso que respondi pro meu filho essa semana, quando ele me perguntou porque eu mato absolutamente todos os insetos irritantes ou qualquer tipo de bichinho insuportável que aparece em casa (enquanto ele salva cada um deles jogando na rua). Eu não podia botar fogo em todos os animais e situações que assustavam minha mãe, onde quer que ela estivesse. E não suportava mais me assustar sempre, do nada, com seus gritos de horror. Então eu queimava a lagarta e aprendia a me satisfazer assistindo um corpo animal se contorcendo e satisfazendo meu ódio, que também pegava fogo.
Esse foi o primeiro transe sádico que me lembro ter construído na infância. Embebida pelo cheiro do álcool e sentindo o bafo quente da fumaça. Difícil foi quando, mais tarde, a culpa me fez centro do meu próprio sadismo. Era aos homens que entregava meu corpo de lagarta para queimar e contorcer. Tornei-me o próprio objeto suposto do medo da minha mãe. Afinal, ela tinha medo do desconhecido e eu desejava cada dia mais ser o próprio desconhecimento incorporado. Uma pena que demorei quarenta anos para encontrar o Retrato de uma jovem em chamas. Talvez eu pudesse ter encontrado o dilema identitário mais cedo e incorporado a heresia sexual ao invés de ter me identificado com o lugar de dejeto do horror do outro, a ser mortificado.
Bom é que meu filho não precisa queimar bicho algum. A raiva dele, ele leva pra passear. Coloca ela na bateria, na academia, no skate, no circo. Apesar dele ser tão jovem, me ensina todos os dias que o medo, basta abrir a porta e espantar que ele sai, encontra seu caminho.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Lagartas em chamas. Em: www.alineaccioly.com.br
