Vestido azul

Do meio do salão ela surgiu. Seus cabelos eram loiros e lisos, presos pela metade. O penteado escancarava os detalhes das linhas delicadas de seu rosto. Apesar de sorrir, seu semblante carregava sinais de alguma perturbação. Ela procurava por alguém. Deslizava de um lado para outro do salão. Falava brevemente com algumas pessoas e, seguindo o passo apressado, mantinha-se à deriva, quase alheia, deixando naqueles que assistiam seu inquieto movimento a certeza de que ela buscava por alguém.

 Não era alta nem baixa. Trajava um vestido azul extremamente feminino e jovial. A roupa ressaltava seu brilho e sua beleza discreta. Distraia qualquer um com seu semblante visivelmente incomodado, transformando-se a olhos nus, em pura angústia.  Ela é do babado, disse uma amiga, pousando ao meu lado. Betânia possui olhos de ravina. A depender da cultura, pode ser considerada uma mensageira mística ou apenas a presença do mau agouro. Na dúvida entre as duas possibilidades, mantenho minha surpresa com a informação trazida por ela e me assusto, como sempre, com sua chegada imperceptível ao recinto.

Mas a verdade é que nem havia pensado nisso. Não estava preocupada no enquadramento de gênero da cena que acabara de assistir diante dos meus olhos. Apenas observara os movimentos daquela jovem com curiosidade, como quem lê um livro e não consegue desgrudar das palavras até chegar ao fim do mistério. Experimentava uma certa vertigem provocada pela passagem daquela moça e me intrigava pela contradição entre a dança leve de sua corpo em movimento e o peso de sua expressão facial.

Está procurando a namorada que agora a pouco estava se pegando com outra moça no banheiro, disse Betânia, sempre atenta aos cadáveres em decomposição para sua ceia tardia. Acenou para a moça, que passava mais uma vez diante de nossos olhos. Essa é Tina, Clementina. Tina, essa é Jô, Joana. Tina me olhou atenciosamente de cima abaixo como quem investiga ou busca algo ainda não-sabido na minha presença. Voltando e fitar meus olhos, sua expressão se alterou pela primeira vez naquela noite. Por alguns segundos, deixou de perturbar-se com algo. Agora parecia enojada, manifestando certo desprezo por ter sido apresentada a mim. Minha amiga riu e continuou falando: Tina, quem você procura esta ali fora fumando um cigarro.

A moça rapidamente voltou a figurar uma perturbação em sua face e saiu em disparada para a direção apontada. Minha amiga seguiu rindo, percebendo meu já não disfarçado fascínio por Tina. Ela não gosta de você, Jô. Ela sabe que fui apaixonada por você e acabei falando coisas ruins do seu desprezo por mim. Faz parte. Olhei surpresa pra minha amiga, mas não estava me importando o suficiente com o conteúdo de sua fala para elaborar uma resposta. Voltei ao encontro das pessoas que me acompanhavam naquele baile e guardei cada detalhe daquelas intrigantes sensações despertadas pela passagem de Tina pela primeira vez na minha vida.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Vestido Azul. Em: www.alineaccioly.com.br

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