Pachinko

A série Pachinko (Apple tv) conta a história de uma família coreana durante quatro gerações, atravessando o período da colonização japonesa na Coréia, entre os anos de 1910 e 1945. Sunja é a protagonista dos quatro tempos alternados na série, no tempo de infância, juventude e velhice. Aos dezesseis anos, Sunja engravida de um rico comerciante e, só então, descobre que o rapaz já era casado. A mãe de Sunja cuida de uma pensão muito frequentada por viajantes e cuida de um pastor doente que chega à beira da morte. Este, em agradecimento, casa-se com Sunja e ambos migram para o Japão em busca de uma vida melhor. 

O ponto alto da série é a narrativa de xenofobia que perpassa toda e cada cena, como pano principal ou pano de fundo dos acontecimentos familiares, entre gerações. Para nós, brasileiros, o cuidado com a legenda foi fundamental para que pudéssemos acompanhar essa trama de xenofobia e alienação que se força aos coreanos. Quando eles falam em inglês, a legenda é branca. Quando falam em coreano, a legenda é amarela e quando falam em japonês, a legenda é azul. Com esse jogo de cores, vamos lendo e acompanhando os efeitos dessa mistura forçada na fala dos personagens. 

Na primeira geração, coreano e japonês são línguas que não se misturam. Com o avanço da invasão e da colonização, as gerações seguintes vão absorvendo o vocabulário e os usos do japonês e, ao final, o coreano sobrevive apenas na voz das senhoras e senhores idosos que resistem ao avanço tecnológico e capital implicado pela colonização japonesa. Há cenas em que o jogo de linguagem é o acontecimento fundamental para compreendermos um pouco do jogo subjetivo que está sendo destacado. 

Em uma das cenas mais fortes da série, uma idosa coreana (primeira geração) é convencida pelo neto de Sunja (quarta geração) a vender sua casa para uma empresa japonesa. O neto depende da negociação para ser promovido e não consegue compreender a resistência emocional que está em jogo para toda uma geração de coreanos que foram humilhados, maltratados e perderam seus costumes e línguas com a invasão japonesa. Dividido, pela primeira vez na série, o rapaz não sabe se mantêm sua lealdade à empresa japonesa e sua promessa de riqueza, ou a sua origem coreana pobre e esmagada pelos japoneses. A cena é forte, pois visualizamos cerca de oito homens japoneses, um americano e o rapaz, único falante de coreano, japonês e inglês, sentados à mesa, a espera da assinatura da vacilante idosa.

Os netos da idosa falam japonês e são a favor da venda, desligados da história familiar. Assim, é ao rapaz que a senhora se dirige, falando sua língua coreana e fazendo-lhe um apelo para reconhecer seu sofrimento. Ele é o único falante de todas as línguas e, portanto, é convocado a tomar posição numa encruzilhada da história. 

Pachinko me fez pensar na minha própria história de migrante brasileira. Nasci em Duque de Caxias, Rio de Janeiro, mas mudei para São Paulo, com meus pais, aos sete anos. Vivemos grande parte de nossas vidas na selva de pedra paulistana, tempo suficiente para deixar de pertencer ao Rio e nunca conseguir de fato pertencer a São Paulo. Aos vinte e sete anos migrei com minha família, mais uma vez, para Uberlândia, Minas Gerais. Completo, esse ano, quinze anos em terras mineiras. Quando me perguntam de onde sou, nunca sei  o que responder. Sou uma carioca sem familiaridade alguma com o Rio, uma paulista forçosamente alienada ao laço social capitalista e uma mineira por contingência.

O que decidimos ser, depois de tanto migrar, afinal? Decidi ser de lugar nenhum. Exilada, em dissidência. Mas responder isso costuma cortar o barato das pessoas, então respondo qualquer coisa que não me dê muito trabalho para explicar. Também decido ser do movimento territorial, por isso seria melhor responder que sou sudestina, portanto. Brasileira, afinal. 

Talvez a parte mais difícil nessas mudanças nem tenha sido a alternância territorial, mas as ascensões de classe social. Pobre e periférica no Rio, classe média baixa em São Paulo, classe média-média em Uberlândia. Proletária, sempre. O que me separa entre essas classes é apenas minha força de trabalho. Bastariam dois meses de diferença para que eu voltasse a transitar em qualquer uma das outras classes, a qualquer tempo. Esta é, portanto, a maior angústia intratável e sem lugar. Nós, migrantes, somos impelidos à busca por condições melhores de vida. Conquistamos algumas mudanças e um pouco mais de dignidade ao longo do caminho, mas passamos a ser sempre exilados, entre lugares, pertencentes apenas a nossa história de andarilhos. 

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Pachinko. Em: www.alineaccioly.com.br

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