
Fonte: Acervo da autora (1982/2024)
O ano era 1982. A cidade era Duque de Caxias, Rio de Janeiro.
Do lado esquerdo da foto, minha mãe sorri, meio desconfortável. Aos dezoito anos, suas roupas largas escondem o corpo magro e uma cicatriz enorme de uma cesariana realizada cerca de trinta dias antes da imagem ser capturada. Frágil, ela tinha medo de sair na rua e a costura da cirurgia se abrir. Minha avó, no entanto, disse que outra mocinha que também havia passado por uma cesariana, já andava caminhando pelo centro. A jovem desafiada, então, decidiu finalmente sair de casa pela primeira vez depois do parto. Pegou sua filha recém-nascida e caminhou de sua casa até a casa da cunhada. Era noite e a jovem medrosa (ou corajosa?) andou cerca de três quilomêtros na ida, três quilomêtros na volta, carregando aquele bebezinho no colo. Depois disso, ela ainda me carregou no colo muitas vezes, por muitas idas e vindas.
Do lado direito da foto está meu pai, que na época tinha apenas vinte e um anos e muito inexperiência de vida, de paternidade, de existência. Meu pai acentua a inexperiência, quando olha pra foto hoje. Minha mãe acha que a ignorância do pobre é o que ajuda a ter coragem, porque ele não se pensa. Não pode pensar-se. Toma a vida como uma obrigação e simplesmente segue adiante, andando.
Reparou que os dois estão descalços? As roupas eram muito poucas, usadas vários dias seguidos. Deviam cheirar mal, lembra minha mãe. E eu ali, encolhidinha, no meu primeiro passeio pelo mundo. Um mundo que ia me fazer ter raiva da minha origem.
O maior roubo que o sistema econômico e a lógica de poder realizam, na vida de um sujeito, é do orgulho de sua história, quando ela é marginal e periférica. É a intrínseca identidade que um sujeito pode construir, para dar borda ao horror civilizatório. Os anos passam com uma velocidade enorme, mas não deixa de ser um horror a quantidade ininterrupta de crianças e jovens pais que ainda são largados a própria sorte na pobreza e na precariedade simbólica.
Hoje sei, ainda bem, que minha raiva é desse sistema, das riquezas absurdas, dos poderes violentos, e não dos meus pais ou da minha origem. Não, não é romântico. Com eles vivi o melhor dos amores e também o pior das violências heteronormativas e classistas. Carreguei o apavoro de quem ganha algum direito e precisa estar sempre alerta para nunca regredir, trabalhar sempre mais e mais. Mas nunca cessamos de nos transformar. Eles começaram a andar no dia capturado por essa fotografia, e desde então, nunca mais pararam. Cada um com seu passo. Esse é um dos meus maiores tesouros. Saber que posso seguir andando, mantendo-me sempre trânsito. Imparável.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Imparável. Em: www.alineaccioly.com.br
