Dos abismos

A primeira vez aconteceu quando eu tinha sete anos, no dia do meu aniversário. Havia passado a manhã arrumando os cabelos, deixando-os cacheados com bigudinhos enrolados pacientemente pela minha tia. Já era começo de noite e estávamos atrasada para o local do aniversário. Minha mãe parecia nervosa e falava com minha avó em forma de cochicho. Quando me viu toda arrumada, pediu pra ir buscar minha amiga, no prédio vizinho. Atravessei correndo o escuro corredor, com certo medo, e quando cheguei na casa da minha amiga, ela não estava, já tinha saído. Voltei com mais pressa do que fui, e quando cheguei suada e preocupada com a arrumação do cabelo, consegui escutar minha mãe dizendo pra minha avó que era possível que meu pai não aparecesse aquela noite. Tinham brigado. Lembro a sensação de ficar parada no escuro, por um tempo incalculável, perdido. Já não sentia medo ou pressa, muito menos preocupação com o desarranjo do cabelo. Senti um vazio, um abismo desses que se instala silenciosamente. Respirei profundamente e entrei na casa como se nada tivesse acontecido. Mas aconteceu. Foi o dia que eu descobri que às sombras a gente sente todo o vazio do mundo que cabe num corpo. E, na luz, a gente performa a alegria que não se tem.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Dos abismos. Em: www.alineaccioly.com.br

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