Loucura literária

No ano de 1974, Lacan deu início ao vigésimo segundo seminário do seu ensino, sobre o tema do nó borromeano. Como os seminários são transcrições de suas aulas, podemos acompanhar, ao longo dos encontros, o crescimento da inquietação de Lacan na convocação de falas, de perguntas, de quaisquer manifestações advindas daquelas pessoas que o assistiam, desejoso de saber o que faziam a partir do que ele ensinava. Não à toa, em certo momento do percurso de suas aulas, ele escreveu uma texto intitulado “Estou falando com as paredes”, colocando em questão a solidão de quem sustenta um ensino com a presença de mais de quinhentas pessoas, mas resta apenas com os ecos de sua própria voz ressoando entre as paredes, como companhia. 

Na lição de 18 de março de 1975, ele parecia muito feliz com a intervenção de Soury, que desenvolveu um pequeno esboço de uma conjectura teórica a partir de um erro de Lacan encontrado em um seminário apresentado há dois anos. Dois anos antes! Lacan gostava de saber que deixava rastros e que havia leitores que se fisgavam nesses rastros, não apenas como súditos passivos, mas como sujeitos que encontravam esses buracos, suas errâncias, para entrar no jogo da invenção do nó borromeano. 

Fiquei com essa expressão, sobre “fazer com os rastros do Outro”. Fazer algo, sejam conjecturas, escritas, teorias, a partir dos espaços em que o Outro passou e equivocou. É dessa época do seu ensino, inclusive, que Lacan passou a pensar a interpretação analítica como o equívoco, deixando para trás a ideia de deciframento e atribuição de sentidos às traduções do conteúdo inconsciente. Interpretar, portanto, incidiria sobre o ponto de equivocidade do sonho, naquele pequeno espaço onde não há sentido possível a ser atribuído, mas um nó que escreve todos os equívocos que podemos cometer ao tentar traduzir e decifrar o estilo do sonhador e seu modo de formar, figurar, condensar e deslocar seu inconsciente. 

Por isso, foi muito surpreendente que, no mesmo dia, eu tenha encontrado com o episódio 62 da Rádio Novelo Acontece. Intitulado Garrafas ao mar, o episódio apresenta duas histórias que se constituíram a partir de rastros deixados por duas mulheres e como dois homens se fisgaram por elas, anos depois, contingencialmente. Essas mulheres, ao contrário de Lacan, não deixaram rastros propositais em uma história de ensinos, por isso não esperavam pelo retorno de suas próprias vozes escritas há tantos anos antes. É interessante elaborar como a escrita (a partir de notas ou da voz gravada) circunda o mundo e retorna de outro lugar para elas, como se viajassem no tempo. 

Na primeira história, um ator compra um livro usado em um sebo, mas fica absorto na história contada aos pedaços, através das notas que a antiga dona do livro fez durante sua leitura do livro. Essa mulher conversa com o texto, deixando pequenos fragmentos que são lidos e conectados pelo ator. No final da leitura, ele constrói diversas possibilidades de interpretação para essa história fragmentada deixada escrita pela antiga dona do livro, trinta anos antes.

Na segunda história, um dramaturgo em busca de inspiração, encontra uma fita cassete num sebo, contendo a gravação de uma carta de amor, aos pedaços, destinada a um namorico vivido por uma moça a cerca de trinta anos antes. A fita começa com a voz da moça descrevendo todo tipo de situação vivida por ela em sua vida. Mas ao transcorrer das gravações, o conteúdo da fita acaba se revelando numa reflexão espiritual sobre a existência, a morte e os destinos que sua vida toma. 

Ambos leitores conseguem encontrar essas mulheres, com alguma dificuldade, e apresentam para elas os efeitos que aqueles objetos, fruto da escrita delas, provocaram naqueles dois homens. A primeira conta com detalhes tudo que aconteceu depois de seu encontro com o livro, um longo divórcio numa época em que isso era mal visto pela sociedade. Mas prefere manter-se em sigilo. Já a segunda topa gravar uma participação no podcast, emocionadíssima com o reencontro de uma parte de si que não lembrava, pois nem mesmo reconheceu a própria voz na fita. No entanto, ao final do acesso ao conteúdo gravado, não apenas se encontrou com sua história perdida como concluiu que ainda é a mesma moça pensadora, afetada e reflexiva, só não mais tão jovem e nem com a voz tão fina. 

Os rapazes levaram adiante os efeitos coletados a partir do encontro com os dois tempos  dessas histórias. Um deles escreveu um livro sobre toda essa jornada, do encontro com o objeto ao encontro com a criadora deste último. O outro intenciona criar uma peça de teatro sobre os acontecimentos.

Voltei a pensar em Lacan e a solidão de seu ensino, diante do espaço temporal que existe entre um desejo, sua criação como objeto, o acesso desse objeto no mundo e a constituição de um novo fazer, por outra pessoa, a partir desse objeto caído.  Essas transformações às vezes ficam apagadas pelo efeito do tempo, mas são, na verdade,  transformações de um elemento em outro através desse fio de criação entre pessoas, projeto silencioso que leva um tempo muito maior do que o tempo cronológico enquadrado de uma vida. 

Lacan nomeou essa trama de Uns sozinhos, um enxame de Uns sozinhos. Eu gosto de nomear como nossa solidão partilhada. Quando escrevemos, criamos, investimos tempo com a loucura literária e artística. Seguimos através das mais variadas formas, jogando garrafas ao mar na aposta de que essas cartas naveguem por rotas não conhecidas até serem pescadas, servindo para alimentar a fome de milhares de outros seres solitários como nós que vagueiam na busca por essas mensagem perdidas, para se fisgar e produzir suas próprias cartas ao mar. Por isso, fico muito feliz de ter conseguido esse ano encontrar uma dessas garrafas perdidas no mar, através do encontro com Patrick e Clarice em Felicidade Clandestina.

Participei de um curso ministrado por Patrick, em janeiro deste ano e, a partir das nossas trocas em torno de Clarice, achamos uma forma de transformar essas conversas em texto. Depois de cinco meses, vamos lançar essa garrafa no mar da escrita: “A filha desconhecida”. Porque é preciso semear os grãos do amor à letra no mar das palavras e torcer para que elas sejam colhidas, plantadas e semeadas em outros territórios, brotando de outras formas tão inimagináveis quanto as histórias acima, no coração dos solitários que ainda acreditam na loucura literária e no prazer do texto como forma de enlaçamento no fio atemporal da vida.

Foto do acervo pessoal de Patrick Bange


Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Loucura literária. Em: www.alineaccioly.com.br

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