Meus traços são garatujas

[O texto de hoje é uma colaboração enviada por “G.” Foi escrito e enviado pelo autor para inaugurar um novo tempo de escrita que toma curso em sua história]

Meus traços são garatujas

Mon(fr) +s traços are (in) gara tuyas (es)

Monstraços são garras tuas?

G

 

Existem tantos  procedimentos de leitura quanto existem maneiras de andar numa estação de trem. Os passantes lotam os saguões, andando para pegar o trem e serem pegos pelo trem todos os dias, em movimento estacionário. Em suas vidas e em suas mortes, vão levando suas coisas e a si mesmos para outros lugares repetidos e novos, de forma colaborativa ou forçada. Andam, traços de letra cotidiana, e acabam desenhando seus caminhos e uma direção naquela estação. Rabiscam o espaço e o tempo em seus deslocamentos: em um minuto, viram um pouco à esquerda, evitando o esbarrão com outro arabesco, riscado de vida e morte, depois o instante se transforma, na aceleração do passo à frente ou na redução da passada. Por vezes,  esbarram em nomes indistintos.

Os leitores podem estranhar o traço dessa letra que vos escreve. Mas não estarem familiarizados com o traço de uma letra é outra ordem das coisas de viver e morrer. É preciso discernir e suspender a ordem das coisas comuns e quaisquer. É quando os passantes traçam um caminhojamais cursado, ainda que no mesmo percurso de todos os dias, situação onde o critério de decisão seria o de passar, saindo da frente de outros transeuntes. 

Uma súbita ocorrência pode capturar dois corpospassantes diante do inevitável e temido acontecimento: a escolha do mesmo espaço a partir de um gesto. Ao virar para um mesmo lugar, se deparam com o fato de que os dois corpos não poderão ocupar o mesmo espaço, nem tampouco se atravessar sem consequências. O espanto os paralisa de seu alinhamento desenhado, e mesmo sem se tocarem se dão conta da suspensão do combinado sem ele ter sido dito: não cabemos no mesmo espaço e no mesmo tempo. Durante alguns segundos, de profunda durabilidade, surge a dolorosa constatação: vão ter que mudar para outro rumo. Ao mudar o rumo, o outro segue acompanhando o gesto, permanecendo no impasse. Ó céus, não os livrarão disso jamais? 

Há outra tentativa de desvio, um deles mira adianteuma saída e mira para lá. O outro vai para o mesmo lado. Algo se desconfigurou do que era silenciosa regra posta. A realidade se dissolve entre o que é regular e normal. Os corpos parecem derreter e com eles seus limites. O possível parece rir da situação. Nunca avançaremos?

Mas há desfecho. O impasse é ultrapassado, apesar dos segundos inesgotáveis. Os dois corpos se dissolvem e passam ao cair de volta para seus trilhos de rabiscos, em movimento. A possibilidade de retratar esses rabiscos acende a chama da esperança: é possível ver cada um como quem vê uma abelha em um enxame.

Mas esse traço da letra não seria reconhecido pelos leitores, ainda mais se fosse possível mais um passo, o inverso do que se espera. Que esse traço da letra não reconhecesse os leitores, essa forma de verdadeira de garatujas, tivesse ela o poder de não admitir os leitores a sua ação de ler ao negar-lhes algo, deixando-os sem acesso. Dizer que a letra é ruim, disforme, prova que o traço dessa letra recusa o leitor e insiste em sua forma tão específica e pouco (ou nada) inteligível. Tachada de desenho tosco, a letra leva culpa pelo traço dito malfeito. 

É preferível pensar que esse trejeito não é produzido por um desjeito, uma falta de habilidade. Seria o contrário disso: o grotesco do corpo que traça a realidade, no espaço e no tempo, a cada passo. Isso não é arbitrariedade, é decisão. Não é qualquer bobagem ou mera tolice. É uma daquelas posições certeiras, que acertam ao negar sua chegada aos leitores.

A capacidade de estranhamento dos leitores, diante do traço da letra, tornaria razoável afirmar que esse traço cumpriria seu efeito de descompreender-se. Cumpre parar de compreender a si, como uma consequência do desvencilhamento da precisão justificada de um leitor, como quem compartilha e é compartilhado pelas coisas que são escritas. Nos traços da letra que os leitores nem sabem que são escritas, isso ocorre regularmente. 

Relembrando a cena de abertura de um filme, há um cruzamento de uma avenida muito cheia, as pessoas transitam como se estivessem naquela estação de trem. Mas é uma rua cheia, há o sinaleiro e duas pessoas. Se escuta, ainda, “…and so it is… Just like you said it wouldbe… Life goes easy on me… Most of the time…”. O que não se escuta é o diálogo entre o cara que não tira o olho da filha do vento, e o vento, em uma conversa estabelecidaantes do encontro concreto. A dispersão não é na tela, nem nas caixas de som, muito menos na sala de cinema. Tão perto, perto demais, a música toca no ar, mas esconde.

Coube ao esquecimento, mas há aqueles que se espreitam nas linhas de vida e morte do mundo e dos outros sem colher delas encontros, acordos ou despedidas. É preciso desejo para lembrar que não encontrar não equivale ao desencontro. Poderia ser no cruzamento, em um corredor, atravessando a rua saindo do museu. Quem fica na região sem os traços de sempre pode se perder de si e esse é um poder que poucos topam arriscar, porque é irreversível – há um si antes e um si depois, ambos distantes e próximos dos mesmos si’s de sempre, na estação, no corredor, no depois e no antes. Há algo de monstruoso em não se oferecer ao leitor pela via da compreensão.

Quem estranha as vezes são os leitores e as vezes são os traços monstruosos de letra. Já o objeto de estranhamento pode ser qualquer um numa série, qualquer um posto que nenhum basta para aplacar a familiaridade com as garras de nada. Isso ocorrendo, já que os corpos caem, e em queda só podem estabelecer o ser comum estranhando-se, e se entranhando se distorcer e procurar o extraordinário de si. E aqui é preciso dizer que é possível não estar censurado frente ao que lhe é familiar e deixar verter e passar, permitir admirar a fratura do inteiramentosem bengalas, sem máquinas de esquecer ou de lembrar.

E nem os caminhos revolucionários deixarão de ser promessas estúpidas que nunca foram feitas, mas para as quais conferiu-se estatuto daquilo que faltava. Há erro? Em querer entender o sonho de sempre sem pagar o preço de perder a posição que se ocupa: morte. E poderia ser assim com os traços, as letras e os leitores. Ficar perto demais e finalmente encerrar algo que sequer iniciou ou que iniciou brevemente e foi interrompido, qualquer coisa de muito perto faz o mesmo efeito de não ficar. E ainda tem a chance de aparecer na casa das pulseiras vermelhas as pessoas com pulseiras azuis de outra realidade, mostrando a distorção e o despedaçamento advindo do fato de que todo mundo era igual e completamente distinto.

E talvez esse traçado de letra não seja assim tão estranho. Mas algo de comum e banal como um gesto de se virar pro mesmo canto de uma estação. Comum igual uma abelha é comum a um enxame enquanto está no enxame. E que só sabemos dela pela reverberação, seu impacto reverbera do enxame e não só da abelha, mas comparece ainda a suposição da abelha à distancia. É como um efeito da abelha que zoa não nela ou dela nem sequer do enxame, mas dos ouvidos alheios, das peles outras, dos olhos de lá, de qualquer buraco que não o de si. E, ainda, o que se ouve é todo o resto.

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