A calistenia é uma prática esportiva cujo princípio fundamental é trabalhar com o peso do próprio corpo. Não se trata de forçar uma equivalência a um corpo ideal e, só depois de criar uma ilusão insustentável, afirmar a sustentação do peso. A prática incide no corpo a partir do trabalho com movimentos, com a força e com o equilíbrio, articulando um modo único de sustentação, na constância do movimento, a partir do próprio peso corporal real e singular. O peso de um corpo, afinal, não se resume à soma de sua massa corporal, gorduras, ossos e órgãos. O peso é, especialmente, uma percepção difusa da condensação de experiências vividas por esse corpo específico após a extração das lascas perdidas para variados traumas.
Há pessoas que fazem terapia como quem faz dieta. Buscam emagrecer dos traumas e das experiências que pesam em seus corpos, como se precisassem se livrar de um membro fantasma que insiste em existir, invisível, presente em ausência. Mas a cura pela palavra não intenciona roubar do corpo suas formas (mesmo que assombrosas), porque a palavra é também a possibilidade de transformação nos modos de narrar os imbróglios da vida. Esse peso, do corpo e suas experiências, não dá pra tirar. Parafraseando Clarice Lispector, é preciso ter cuidado com as bengalas que tiramos das pessoas, porque não sabemos a estrutura inteira que elas sustentam. O objeto, no nosso caso, é a narrativa, a capacidade e o direito que um sujeito tem de narrar seu sofrimento, contar sua existência, servir-se do peso transformador das palavras que carrega para aprender a dançar levemente através delas.
Quanto pesa ter um corpo? Quanto pesa o seu corpo? No meu caso, o maior peso que compõe a massa estrutural onde habito não é formado apenas pela composição da matéria orgânica, mas da inescapável solidão existencial. O que não posso perder, em qualquer dieta de emagrecimento, é o peso de todas as palavras que carrego nas minhas vísceras, escorrendo na minha corrente sanguínea e impregnando todo o meu sistema nervoso, trajeto que perpassa e costura cada pedaço do meu organismo. Tenho 42 anos e o peso de cada palavra que atravessou meus poros, meus ouvidos e minha boca. Elas me fazem companhia, afinal.
Ah, mas os pensamentos… como eles pesam! Porque eles são fabricados pela invasão das palavras de outros que ainda não foram mastigadas, depuradas, esfareladas. São material bruto em trabalho de decomposição. Quando mexemos o corpo e gastamos essa energia palavreada, transformamos seu peso em combustível de vida, porque pesam mais ainda as palavras que parecem desaparecer, mas retornam para nos assombrar como fantasmas esquecidos através do tempo e da evitação de traumas. Que fiquem marcadas como cicatrizes, ao menos, pois figuram a permanecia enraizada nas dobras cutâneas, incorporadas em cada curva e planície do corpo.
Escrever é inescapável. É uma prática, como a calistenia, mas diferente dela, porque exercitamos a articulação das palavras para que elas carreguem seus pesos, tão singulares quanto são, a cada história de vida. Ao manipular as formas, as operações gramaticais e seus enredos, elaboramos, com a escrita, composições que suportam o peso do texto e resultam na permanência e na constância dos movimentos vivos entre as letras. A palavra vive, pois o peso morto que ela carrega é fissurado, aerado através da escrita. As palavras furadas enfim abrem-se à fecundação do grão de letra que deixa as ultrapassar, cerzindo um fio de estilo que se encerra no corpo de um texto, transformado, sopro de uma existência em exercício. Palavra buraco. Palavra sopro de existência. Palavra ato de transformação. Alquimia.
E vocês insistindo em fazer dieta. Tudo bem, eu também estava. E desisti, graças ao amor à literatura. Comecei a escrever em janeiro de 2024 no projeto Diário da dieta. Escrevi quase duzentos textos diários, que vocês devem ter recebido e lido. Mas o projeto se tornou insustentável, como vocês perceberam na minha ausência pelo caminho, especialmente no último mês. Agora escrevo de outro jeito por aqui. Ofereço meu desconcerto, esse constante exercício de furar o peso das palavras e cerzir fios de estilo, apostando que os sopros aerem também suas peles, onde quer que estejam. Nãotodo dia. Mas, quase sempre, furo, letra e corpo.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) O peso de um corpo. Em: www.alineaccioly.com.br
