Em uma cena da série The Bear, na terceira temporada, há um momento, que dura menos de um minuto, em que um dos personagens tira a aliança de casamento do dedo. Ele havia chegado em casa, após visitar sua filha na casa da ex esposa, e ela ter contado sobre o casamento da mãe e sua preocupação com a solidão do personagem em questão. Ele fica fisgado na palavra usada pela filha, e perde algum tempo tentando discernir se o termo é uma tradução da filha ou o próprio conteúdo dito por sua mãe. Alone ou lonely? A menina, no entanto, não soube responder à questão. Situada num período infantil, a garota não se apegava, ainda, ao sentido das palavras e seus pesos ao serem ditos. Assim, o personagem encara seu reflexo no espelho do banheiro, depois de se despedir da menina, e deixa a aliança na pia, dirigindo-se a porta de saída da casa.
Os instantes, ah, os instantes de decisão… Depois de mais de quinze anos de experiência clínica, vinte no total, se contar com minha própria análise, aprendi a apreciar os instantes de decisão dos sujeitos. Por vezes, são anos, muitos anos, em que uma pessoa fica repetindo, ensaiando decidir por um caminho, mas cede ao mesmo, ao retorno pelo trajeto imposto por uma determinação de um conjunto de palavras ditas por outras pessoas. Quanto tempo as pessoas levam revivendo lugares que já sabem não pertencer, assistindo, com desespero, ao futuro que nunca chega, amarrados em relações passadas!
Nas análises, quase sempre é o próprio paciente que parece não se aguentar mais, ao que o analista responde na insistência da aposta, na transformação que se impõe como uma flor que desabrocha da noite pro dia, mas sempre esteve lá crescendo devagar, em seu tempo, porque foi regada, cultivada, cuidada. A decisão dos sujeitos aparecem nesses instantes, com toda sutileza e discrição com que são estruturados, quase nunca como novela, muito menos como um grande evento mundial super celebrado. É como acordar um dia e deixar a aliança, de um casamento que a muito tempo esteve acabado, em cima da pia do banheiro, após flagrar-se interrogando uma criança sobre o sentido de uma palavra que sobrou distante e vazia da boca de um outro.
A decisão incide sobre a assunção do sentido que o sujeito deseja atribuir ao buraco da palavra, produzindo um ato de liberdade nessa mesma palavra que outrora havia sido tão enclausurante. Lonely ou alone? Diante do espelho, ele decide o atributo, e transforma o fato “sozinho” em contingência momentânea, uma oportunidade de ato, decisão do caminho, uma via de passagem como saída. Vai, levanta e anda, diria Emicida.
Ainda me lembro, como o frescor de uma manhã, de uma das separações que vivi. Nela, quem desabrochou não fui eu, mas ele. Talvez tenha sido a mais traumática, porque foi ele quem primeiro tirou a aliança. Talvez eu conte uma meia-verdade, porque estou avisada que a memória é apenas uma construção, uma ficção de verdade que tenta se tornar um mito inesquecível da jornada de construção de um sujeito. Se incremento ou desinflo a tragédia que vos escrevo, peço desculpas de antemão. Prefiro perder as garantias que vocês ilusoriamente depositam em minhas palavras, do que perder o fio do trajeto.
Me lembro de chegar em casa, de uma viagem, e ver que ele não mais usava nossa aliança de casamento. Estávamos separados e brigando a muito tempo, mas quando as palavras passam ao ato, quando um objeto cai do corpo, o efeito é indesviável. Ainda rumino sobre os anos em que passei alternando entre agitação e tristeza, sem conseguir capturar precisamente o fator que realmente situaria o ponto de transição entre esses dois estados de existência.
Acho que abandonei meu casamento muito antes do que ele, porque decidi primeiro me manter casada com meu sintoma. Qual era o nome do meu sintoma? Descobri, recentemente, que o ponto de trânsito entre os dois lugares aos quais eu estava habituada, a agitação e a tristeza, era a covardia, a ausência de decisão. Não se tratava de dúvida, mas vergonha. Não era estratégia, nem adiamento, mas vacilo. Ao me casar, jurei silenciosamente obedecer a hesitação, a irresolução como promessa de permanência, até que a morte nos separasse. Não a toa, pensava em suicídio constantemente.
A contradição é que eu havia me apaixonado pelo impulso à coragem, ao desejo e ao ato que havia escutado dele, anos antes, ao me incentivar a tomada de coragem para romper com uma vida que não fazia sentido. Ao me flagrar diante de qualquer desejo que fosse meu, único e exclusivamente meu, eu teria que aparecer, porque não existe caminho para o desejo sem o estilo e a inclusão do sujeito nos atos que se seguem, passo a passo. É quando você decide deixar cair quaisquer objetos que carrega, quaisquer alianças e promessas que passaram a te aprisionar, e abraça o peso do próprio corpo, é que tem início a transformação, o traçado de um trajeto. Diante desses instantes, discretos, mas fundamentais, onde eu recusava aparecer azul, minha cor mais quente, a agitação ficava sem propósito e a tristeza se impunha, como um luto por ter me perdido.
As decisões do sujeito não se confundem com suas escolhas. Na vida, fazemos várias escolhas o tempo inteiro, entre uma coisa ou outra, porque achamos que temos opções e calculamos rapidamente todas elas para ir seguindo. Mas, chega uma hora que não se trata mais de escolher, pois é preciso enfrentar o que é inegociável em nós, imprescindível para que continuemos seguindo o caminho que traçamos para os nossos desejos, sejam eles quais forem. Nessa hora, não há escolha, não há acordo, não há negócio. Há decisão. Há de-cisão. E a decisão é um ato que marca um instante por onde tudo gira, rompe, abisma, e não há mais retorno ou repetição. E a gente sabe muito bem que momentos são esses na vida, porque sabemos exatamente quando o adiamento nos faz perder o tempo.
Nessa mesma série, The bear, um dos episódios anteriores havia começado exatamente com o burburinho diante de uma lista de inegociáveis, escrita pelo chef principal do restaurante. A cada funcionário que chegava, a lista era relida e havia sempre uma tentativa de negociação. O chef repetia, a cada palavra, que aqueles itens eram inegociáveis. Percebendo que não poderiam mexer com o que era inegociável para ele, em questão de pouco tempo, outros personagens também escreveram e apresentaram suas listas de inegociáveis. Nada mais justo, afinal. Que cada um saiba muito bem o que é inegociável para si, como estratégia para saber a importância do que é inegociável para o outro. Um desses personagens é o mesmo que apresentei no começo deste texto, que chega em casa, dias depois de escrever sua lista de inegociáveis, e tira, finalmente, sua aliança de casamento. É um momento solitário, que se realiza sozinho. Alone and lonely.
Se me lembrei do dia que meu ex-marido tirou a aliança, primeiro, depois de uma série de eventos caóticos que aconteceram numa viagem que fizemos, é porque me lembrei da sensação de chegar em casa e ter certeza que tudo estava acabado, mas me dar conta que o mal estar que me consumia advinha da minha covardia. Do meu vacilo. Da minha hesitação. Da minha tentativa de negociação com o que era inegociável entre nós. Eu não decidia, seja lá o que fosse naquela época, e me deixei viver um caos por covardia.
Nós nos tornamos as piores pessoas do mundo, irreconhecíveisa nós mesmos, quando deixamos nossas vidas nas mãos dos outros. O gosto sempre é agridoce. Porque, como já dizia Fernando Pessoa, só nós somos iguais a nós próprios. Essa é a solidão inegociável, fundamental, companheira inescapável no trajeto da vida. Ninguém pode viver nossas vidas por nós. Só nós. Às vezes até viramos um bando de sós entrelaçados e em canto pelas beiras do mundo. Mas, o movimento vital é constante. E quando um fio se solta, por força de sua estrutura, seguimos adiante. Basta não ter medo do trajeto. A transformação constante é a única certeza que nos acompanha pelo meio do caminho. E essa é inegociável.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Sobre os trajetos. Em: www.alineaccioly.com.br
