Anjos

Durante um evento internacional de tradução, um palestrante apresentou um trabalho sobre a escrita poética a partir da posição sacrificial, comparando Charles Baudelaire e Augusto dos Anjos. Enquanto o professor explicava sua hipótese, me distraí, prestando atenção nos participantes internacionais que assistiam ao evento, e gastei alguns segundos divagando sobre o aprisionamento territorial de nossas fantasias. Quantas pessoas diferentes existem no mundo, nesse território tão vasto e complexo que se chama planeta terra, e quanto tempo perdemos procurando pares dentro conhecidos do nosso meio, muitas vezes quase alienígena, estranho, desconhecido, distante! Voltei a atenção ao estranho professor, cuja performance parecia imitar o trejeito europeu e, naquela altura, citava trechos de poesias de Charles Baudelaire e Augusto dos Anjos para defender a semelhança com as quais ambos tratavam a escrita orientada pelo sacrifício. 

O professor, que havia dado margem às minhas divagações sobre o estranho e o familiar, me fez duvidar das minhas silenciosas ruminações em menos de dez minutos. Ao escutá-lo, desta vez com muita atenção às suas palavras, estas ressoavam um elogio à perversão encontrada através sua leitura do traço sacrificial comum em certo momento do cânone literário Francês. Meu incômodo estava situado no seu esforço em demonstrar que a escrita sádica de Baudelaire se ligava por um fio à escrita melancólica de Augusto dos Anjos. 

O professor falava através da perspectiva literária e eu estava imersa numa leitura psicanalítica. Diante desse abismo, revelado pelo modo como fazíamos usos distintos desses discursos para ler os mesmo textos, o que me incomodava era o modo como ele cerzia seus argumentos para ligar os estilos de escritas tão diversas. Se Baudelaire, em seu estilo, toma a escrita sacrificial para esparramar sua resposta sádica pela comunidade, fazendo do leitor uma testemunha silenciosa e covarde dos males da comunidade, Dos Anjos, por sua volta, aposta no desaparecimento como um sacrifício indesviável a ser cumprido, para despossuir-se de um Eu e deixar apenas os restos de uma voz que ressoa, em alguns versos, para aqueles que o lêem. Se ambos escrevem o sacrifício e esse é o ponto que os aproxima, o fio que os separa é justamente o da decisão, do ato e do estilo de incorporar e escrever essa marca.

O elogio ao sadismo não difere tanto assim em qualquer lugar do mundo, afinal. O professor havia iniciado sua fala constatando sua identificação com Dos Anjos na adolescência, mas aquela versão adulta, que apresentava um trabalho no evento, buscava uma saída textual nesse ponto de semelhança com uma posição outra, baudelairiana, muito mais interessante para um homem adulto. Minha perturbação estava instalada, como se estivesse sido sorrateiramente forçada a testemunhar uma decisão e sua construção. Talvez por isso não goste mais de eventos academicos. 

Não me fartei com a possibilidade de abrir a boca para questionar o professor, apenas fiz um comentário sobre a distância entre as decisões narrativas dos autores. Diante de uma plateia cheia de pessoas que pareciam estar mais envolvidas com seus pensamentos, ele sorriu com a única pergunta feita em sua direção. Até porque o elogio à perversão não encarna o mal do mundo, sabemos disso na atualidade. A maldade é uma decisão possível a qualquer pessoa a qualquer hora, por isso é um alívio saber que algumas apenas flertam com seu traço de caráter através da sublimação, no texto. Há sadismos em todos nós, porque desejar, qualquer coisa que seja, nos impele a satisfação, a realização, custe o que custar, qualquer que seja o arranjo. Cada um lida com esse ponto à sua maneira e não é isso que nos torna maus, apenas perturbados. O que é, então, a maldade?

A essa altura das minhas elucubrações, eu já tinha tomado meu rumo e saído do evento, convencida de que as pessoas não são muito diferentes em qualquer lugar do mundo. Havia flagrado-me nessa ilusão, devaneando sobre alguma surpresa contingencial no meio de uma noite cansativa, depois de um dia longo. Dos Anjos e Baudelaire havia sido um tiro no meu pé no final do dia. Como uma carioca que se acostuma com o tiroteio, mas nunca se acostuma de verdade porque não se esquece que sempre pode acabar em morte acidental. 

Houve um tempo em que eu acreditava em Anjos. Eu era adolescente e decidi nomear meu primeiro filho com o nome desses seres celestiais. Na época, a motivação adivinha da certeza de que os anjos não tem sexo e carregam a mensagem de Deus, transmitindo os arautos dos desígnios divinos aos homens. Por isso, eles não oferecem os perigos da carne e do engano. O anjo Gabriel, em especial, portava a anunciação de Maria sobre sua vocação para gestar o filho de Deus, um novo Messias, porque ele era um anjo que anunciava as vindas dos profetas. A mensagem de Gabriel, quando entregue, mudava o rumo da vida daquelas mulheres para sempre, exigindo delas uma sabedoria para seguir seu destino anunciado. Mas, independente do conteúdo enviado por Deus, o anjo Gabriel é o anunciador da Palavra como a encarnação do verbo de Deus, devido a sua responsabilidade diante de tal tesouro criador da linguagem. No judaísmo ele também ficou conhecido como o destruidor de Sodoma e Gomorra. 

Menciona-se, em alguns escritos bíblicos, que o complexo de cidades de Sodoma e Gomorra era composto por lugares aparentemente paradisíacos, mas seus habitantes praticavam, livremente, a sodomia e o sadismo. Suas vítimas eram os visitantes, estrangeiros que chegavam àquelas terras em busca do paraíso e terminavam tendo seus corpos usufruídos à sua revelia, como preço a se pagar pelo sonho de uma vida de prazer. Posteriormente, numa leitura enviesada, deu-se muito foco ao tipo de prática sexual, quando o verdadeiro crime situava-se na forçação dos estrangeiros ao pagamento com o corpo, como pedágio de entrada e servidão territorial. Não apenas os humanos estrangeiros eram vítimas dessa prática “paradisíaca”, mas também alguns anjos que passavam com suas mensagens.

O anjo Gabriel passou por lá e ganhou o título de príncipe do fogo, pois foi o anjo da vingança que destruiu Sodoma e Gomorra, não por suas práticas homossexuais, mas principalmente pelo sadismo com a qual essa população tratava aqueles que não faziam parte de sua comunidade. Aquele paraíso nunca havia sido possível para todos. 

Há muitos anos não acredito mais em anjos. Continuo acreditando, no entanto, na decisão das pessoas pela maldade. A busca pelo paraíso particular ainda oferece riscos aos que chegam como estrangeiros nesses sonhos. Acredito, principalmente, nas mensagens que entregamos às mulheres e às mães através de nossas palavras. Assim, a margem de suportabilidade para o elogio ao sadismo anda quase inexistente no meu território, especialmente depois da pandemia, do Bolsonaro e da crescente onda de feminicídios no mundo. Seja o sadismo praticado como forma de coletivizar o desejo fetichizado ou como forma de autopunição e expiação corporal, ainda prefiro ficar de fora dessa orgia palavreada. 

Há graça em não ser devorada, como escreveu Clarice Lispector em algum texto. Suas palavras pesam, seus movimentos nos causam vertigens, mas, no final do caminho, são essas palavras que brotam, posteriormente, de nossos dedos, ávidos por alimentar essa rede de palavras ao vento, como sopros que carregam mensagens, mas de amor, dessa vez. Há graça e não é a divina, mas a do riso. 

Acredito cada vez menos em qualquer verdade ou certeza consistente de algum saber. Resta, firme, o sopro de amor, tão inconsistente quanto o toque do vento na pele, que só sentimos porque modifica a textura e balança os pêlos, que respondem como pétalas de flores em festa após a passagem da vida por seus fios. E não são as flores do mal, Baudelaire, sinto muito. São flores benjaminianas, que estão só de passagem e que só se tocam depois da queda, quando suas pétalas, quase mortas, soltas, são depositadas no colo do mesmo solo que as une e separa, desde a raiz que um dia foram, porque estão em paz com o tempo da vida e da morte. 

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Anjos. Em: www.alineaccioly.com.br

Discover more from Desconcerto de Lalíngua

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading