Fios

Enquanto lavava o cabelo, Paula sentiu-se mais leve. O ar parecia entrar em maior quantidade nos seus pulmões, o peso da matéria dura e consistente do seu corpo parecia se transformar em furinhos, como os de pudim e os de queijo. Ao passar a toalha na pele molhada, olhou para o chão e descobriu um emaranhado de cabelos caídos, fechando a passagem de água no ralo. Assustou-se com a quantidade de fios perdidos, soltos, e fez graça da relação recém experimentada de leveza com a quantidade de fios perdidos. 

Após pendurar a toalha para secar, pegou o emaranhado de cabelos com as mãos e, olhando-os de perto, pensou sobre a existência do corpo vivo no mundo e o mistério de sua lenta e constante decomposição. Paula sabia que os cabelos não paravam de cair, pois cediam espaço aos novos fios em um ciclo incessante entre a morte e a vida das células. Quando os órgãos vitais se desligam e param de funcionar, há um tempo de atraso entre essa informação e as células responsáveis pelos crescimento dos fios, que permanecem se desenvolvendo sem reconhecer, ainda, sua parte em um corpo já morto. Os fios, portanto, não são os melhores índices referenciais para afirmar a vida ou a morte de um corpo, pois eles não cessam de crescer, em uma lacuna temporal, mesmo depois da morte. 

Mergulhada em seus devaneios, Paula riu mais uma vez, concluindo saber mais sobre a filosofia dos fios do que sobre o mistério da existência humana. Ao vestir suas roupas, no entanto, inquietou-se por não saber responder se estava viva ou morta. E se fosse a existência humana fosse como os fios de cabelo? E se já estivesse morta e seus devaneios fossem apenas como as células de uma existência, supondo-se ainda viva após a morte súbita do organismo onde habita? 

Agitada, Paula não sabia como levar adiante seu enigma recém constituído, pois seu saber reduzia-se à referência celular dos fios de cabelo e o estado de leveza experimentada mais cedo no banho. A alma, caso existisse, não seria feita de células, afinal. Paula conseguia apenas supor que a leveza costumeiramente interpretada como alma resume-se, na verdade, à sensação de um destacamento substancial e inapreensível de seu peso corporal, como em algumas experiências de dissociação e dissolução do eu. Ou em alguns estados oníricos, em que ocorre um desligamento da percepção de realidade referida ao funcionamento orgânico e a noção de existência passa a não mais pertencer a uma noção de realidade vigilante e partilhada. 

Vestida com sua roupa de mulher, Paula abandonou seus devaneios junto com o emaranhado de cabelos, na privada, deu descarga e seguiu para o trabalho. Alguns passos depois de atravessar a porta de casa em direção à rua, despediu-se não apenas da satisfação vivida no banho matinal, como deixou, ainda, para trás e esquecidos, os dramas elaborados na sua curta manhã daquela segunda-feira. O celular estava cheio de mensagens a serem respondidas e Paula precisava correr para chegar a tempo no local de trabalho. O enigma daquele banho permaneceu enclausurado entre aquelas paredes, únicas testemunhas de sua existência misteriosa, como as paredes fechadas de uma caixa de Schrodinger, sem furos e com o segredo da resposta sobre a vida e a morte.  

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Fios. Em: www.alineaccioly.com.br

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