Dose

Encontrei uma carta, não enviada, escrita em janeiro de 1998, para alguém que não se sabe quem é, referido apenas como “amor” nas primeiras linhas da folha. A carta era sobre a solidão, sobre o desejo da remetente de ser salva do que ela se referia como um “estado de espírito”, para usar as palavras da missiva. 

A solidão foi descrita pela expediente da seguinte forma: “É engraçado como estou me sentindo sozinha, não consigo dormir, o que piora minha solidão. É uma coisa horrível, é ruim estar só e cheia de lembranças”. Não achei engraçado, mas compreendi o uso de um fator cômico para aliviar o leitor do conteúdo que se apresentava, de puro desamparo. Ela reclamava, algumas frases adiante, no texto, sobre a presença de um estranho na sala de casa, com sua mãe, detalhando que os dois estavam alcoolizados, o que nos ajuda a conjecturar que a autora da carta poderia ser uma menina de tenra idade, púbere ou nos entornos desse tempo. 

Confabulei, ainda, sobre a ocupação das tais lembranças citadas pela jovem (“só e cheia de lembranças”). Demorei alguns minutos na interrogação sobre o tipo de memória infantil e o sentimento de nostalgia que a jovem possuía, ainda com tão pouco tempo de vida, mas que já funcionava como um preenchimento do espaço vazio com uma fantasia de um tempo infantil percebido como menos ruim. O vazio temporal e o isolamento da menina destoavam do barulho e da presença dos adultos na sala, ocupados, à suas maneiras, com a vida. Escutando os barulhos, advindos da cena estranha que era vivida na sala, estes pareciam ressaltar o barulho do silêncio em seu cômodo, de onde ela, provavelmente, só conseguia pertencer aos ecos de seu pensamento solitário, povoado de ocos e fantasias. 

A carta transmite, por fim, algo sobre a solidão juvenil, definida como um estado de pertencimento ao não-lugar de uma casa. O que antes era percebido como familiar, emergiu naquele contexto, como estranho. O estado de estranhamento, no entanto, não era situado fora do quarto, mas, ainda, nas oscilações de estados experimentados pela incidência de um desconhecimento diante do próprio corpo e seus fenômenos de humor. Nas palavras da jovem: “De dia esperança, a noite me entrego fundo numa profunda depressão. Por vezes me odeio e por vezes me ignoro”. 

Conheço o assombramento noturno vivido por essa menina. Precocemente, reconheci o amedrontamento diante de algo que emerge como estranho, fora, figurado pelas sombras borradas que os objetos inanimados desenham, à noite, nas paredes de um único quarto da casa onde vivi minha primeira infância. Costumava dormir pouco à noite, mas como os adultos que dormiam não sabiam disso, achavam-me dorminhoca demais durante o dia. Apenas quando o sol raiava e a luz entrava pela casa, era possível encontrar com a familiaridade do contorno desenhado pela minha própria sombra, figurada no muro do quintal. De dia, esperança, referência, contorno. À noite, sombras nebulosas, presentes da solidão conjunta com os objetos inumanos, depressão. Como eu já sabia, tão cedo, os nomes das palavras, dos afetos, dos buracos de dor?

Na carta, a menina despediu-se do leitor desejando boa noite para o tal amor, sonhando em dormir e viver outra realidade. O texto, dobrado como um origami, estava guardado dentro de um diário que datava do mesmo ano da carta, 1998. Trata-se de um diário re-encontrado apenas no ano de 2024, cheio de bilhetes e cartas escritas que nunca foram enviadas. Talvez tenham sido destinadas a mim, essa de quarenta e dois anos que vos escreve, que agora sabe ler o que aquelas letras carregam, ainda que não mais me reconheça naquela menina, muito menos nas suas lembranças e apelos.

A solidão persiste, guardada na garrafa, num mar qualquer de palavras perdidas. Mas agora ela mora no tesouro das palavras, como buracos fecundos por onde nascem sementes. O que só os adultos sabem, nas salas de suas casas, é que cada um decide a dose de embriaguez a ser tomada para pertencer ao presente, seja qual for esta realidade escolhida.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Dose. Em: www.alineaccioly.com.br

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