Carta 06

Passei essa semana acordando um dia adiantada. Abro os olhos acreditando que é terça, mas ainda é segunda. Acordo na sexta, mas ainda é quinta. E nesse exato momento, escrevo como quem já passou pela semana, mas ainda habito a quinta. Por efeito, passo os primeiros minutos da manhã intrigada com esse descompasso temporal, estranhando a presença de um adiantamento perceptivo que não coaduna com a calma que experimento ao passar os dias. Reservo o quase enigma ainda não formulado para outro momento, pois preciso retornar à escrita de um caso clínico que surgiu essa semana durante a leitura de A metamorfose, de Kafka. 

Os caminhos da escrita são surpreendentes! Passei semanas preocupada com meu desejo de escrever o caso, mas colocava-me diante do computador e as palavras não me vinham. No final de semana, decidi retornar a leitura de textos que não me canso de ler e descobrir algo novo. Bastou que eu encontrasse a literatura do absurdo em Kafka que o caso clínico começou a brotar naquele terreno estranho, porque ainda não tinha reparado que essa mulher do qual desejo fazer caso nasceu e brotou como personagem de uma literatura do absurdo. Às vezes, o que a gente precisa para escrever um texto não é apenas encontrar as palavras que desenhem um corpo textual, mas o traço de estilo no qual ele precisa se apoiar para existir. Há uma literatura à disposição de cada texto que ainda não encontrou seu caminho de se escrever. 

Agora que escrevi essas palavras, que surpreendem a mim mesma enquanto as escrevo, começo a questionar qual é a estrutura literária que preciso para escrever meu adiantamento experimentado brevemente no despertar matinal. Desperto no futuro, mas estou no presente. O futuro que experimento por breves segundos está logo adiante, vinte e quatro horas na minha frente. Basta atravessá-lo. Mas quando chego lá, desperto novamente e experimento o futuro mais uma vez apenas para concluir a repetição, pois ainda estou no presente. O futuro de ontem se tornou o presente de hoje que sonha com o futuro de amanhã. Parece um nó temporal. Tenho a memória do ontem que despertava amanhã mas vive no seu hoje. Tenho a experiência do despertar matinal experimentada pelo corpo de hoje sabendo da repetição dessa mesma sensação de ontem. Parece uma dança em três tempos. Não há angústia, há surpresa, agitação e uma certa aura de mistério. 

Sempre sonhei em escrever ficção científica com o tema do tempo. Sou fascinada pela lógica da viagem no tempo, mas não essa produzida por máquinas super tecnológicas num futuro desumanizado. A imaginação, a escrita e o absurdo são os elementos mínimos necessários para viajar no tempo. Acho que estou pronta.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Carta 06. Em: www.alineaccioly.com.br

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