Desconhecida

Toda vez que me perguntam de onde sou e de onde venho, nunca sei imediatamente o que responder. A depender do dia, a decisão de afirmar um território de origem se justifica a partir de qualquer desejo momentâneo de contar um conto sobre o ponto da minha peregrinação, inicialmente forçada, de desterritorialização pelo sudeste brasileiro. 

Nasci em Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Com meus pais, morei em mais de seis casas das quais tenho apenas flashes fragmentados de sensações. Um jeito de contar sobre a origem começa, portanto, desenhando minha silenciosa habituação com a solidão infantil do meu corpo e a descoberta da minha sombra durante a passagem por essas casas. Pertencer à própria sombra é a única garantia quando o espaço comumente chamado de casa fica disforme e condensado após tantas variações espaciais. 

Cresci na zona norte da capital de São Paulo. Como um bicho fora de seu habitat natural, cheguei na selva de pedra e não demorei a me encantar com aquele universo econômico sedutor. Aquelas paredes de cimento, seus carros sempre apressados e uma insistente garoa matinal, figuravam uma riqueza circulante que me despertou, pela primeira vez, o horror do reconhecimento da minha pobreza fluminense. O susto, bem figurado pela expressão de horror de Medusa, escondeu meu riso e solidificou o cimento que firmou os alicerces fundamentais para a construção de uma persona social. 

Desesperada para escapar do excesso de olhares estranhos diante da estrangeira que eu era para eles, devorei um mosaico de máscaras para cobrir o corpo e passei a pertencer a correria, em perda constante de mim mesma, como forma de habituar-me ao mundo. Encarnei a lógica do trabalho. Pertencer ao trabalho solidificou em mim a crença proletária e consistente da cultura que reconhece o cidadão a partir dos fios de vida que este costura nos espaços, instituições, relações que transita.

Com meus pais, morei em casas inumeráveis, mais uma vez. Com meus filhos, morei em mais algumas outras tantas. Habitei diversas instituições de trabalho que cristalizaram versões de mim que causam certo mal estar até hoje. Morri pela primeira vez e parti, buscando uma origem em um futuro com poder de transformar o passado. 

Desertei em busca do meu tempo perdido em uma cidade do triângulo mineiro, Uberlândia. Havia me tornado um corpo vagante no espaço, sem lenço e sem documento, totalmente perdida de quem eu era ou podia vir a ser. Minas me ensinou a possibilidade de dizer não ao avanço bandeirante da alteridade ávida por cavar estandartes ao roubar territórios livres e alheios. O trejeito de uma mineirice da farinha podre me ensinou a malemolência necessária para falar cantando numa língua que arrasta formas mais estratégicas de existir. Quem se habitua à caverna escura e aos buracos embaixo da terra, em busca das riquezas da terra, aprende a ficar escondido e exilado da luz sem se perder. Aprende a andar com o saber do corpo e não esquecer de quem se é mesmo coberto de terra vermelha e escura.

 Como quem entra na caverna para encontrar a própria sombra, orientando-me por um trajeto contrário ao do mito da caverna, despi-me dos edifícios de concreto ora construídos e brinquei de inventar meu próprio trejeito de pertencimento a uma língua particular, estrangeira, meu lugar de exílio particular. Encontrei o lugar desconhecido que tanto procurei depois de uma longa errância, para fabricar um mundo sem solo. Encontrei minha casa em terras áridas, mas essa casa não é feita de concreto. É feita de palavras. 

De onde sou, afinal? Traduzo para uma pergunta que sei responder: por onde começo a contar-me? 

Poderia concluir que sou, inegavelmente, fruto do sudeste brasileiro, mas sem um solo originário. Uma origem que precisou ser desenhada com três cidades para ser mapeada a posteriori como fundação de um “mim” alçando a condição de gente. Sombra, corpo e escrita. Sem solo, expressão designada pelo ex-silio, exílio, ex-salto, pois quando não há esperança de retorno, há possibilidade de salto ex, fundação de um futuro anterior, pois o passado só ganha corpo no futuro por vir. Sou, portanto, o que conto como sendo nesse breve instante. Depois? Não mais que uma língua.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Desconhecida. Em: www.alineaccioly.com.br

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