Carta 08

Sonhei que era um verme. Desses branquinhos, que dão em chorume de lixo. Achei ruim, no sonho, porque tinha certeza que era lesma de caramujo. O verme de chorume não deixa rastro por onde passa, surge do nada e fica escondido entre os restos humanos, se alimentando da decomposição de carnes esquecidas no lixo por tempo demais. Já o caramujo, ou caracol, ganha vida através de lesma que carrega sua casa e esconderijo nas costas, deixando um rastro, uma gosminha por onde passa. Lento, não tem pressa para caminhar, por isso passa despercebido e alcança longos destinos. Da família de moluscos, possui uma percepção aguçada, pois não possuem funcionamento auditivo. Entre tantas diferenças que poderia encontrar para distinguir os dois corpos aparentemente indiscerníveis pelo movimento, o que insiste no meu desejo de transmissão do sonho é uma indignação que pairou no ar, diante da constatação do equívoco em me perceber caramujo, mas flagrar-me verme, mais uma vez. Ao menos, no sonho, era preciso ver-me por alguns instantes na equivocidade figurada pelo mundo animal. Vendo assim tão de perto o erro, perdi o asco que normalmente se apresenta quando estou diante dos vermes de lixos esquecidos que parecem apenas a espera de descarte, mas irrompem nos assustando com sinal de vida. Eles nascem dos meus restos esquecidos, afinal! Ao despertar, pude matar a pequena colônia de vermes que havia se criado no meu lixo da cozinha, como prova de que essa semana dei pouco atenção aos dejetos fabricado pelo meu corpo e deixados na cozinha de casa. Às vezes isso acontece. A gente se distrai e os intrusos rapidamente nascem da nossa mais íntima podridão.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Carta 08. Em: www.alineaccioly.com.br

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