Caderno proibido: o desaparecimento das mulheres em vida

No final de Tabacaria, Fernando Pessoa encontra Esteves sem metafísica e o dono da tabacaria o acena, transformando todo seu universo descrito ao longo do poema em uma experiência de alteridade radical, instante em que toda sua realidade recém criada em Tabacaria se torna uma pura queda diante do reconhecimento presente no gesto do dono da tabacaria e da possibilidade de reconhecer uma realidade completamente outra em Esteves sem metafísica. 

É em outra tabacaria, no entanto, que a realidade da personagem de Alba de Cespedes, em Caderno Proibido, começa a desmoronar. Na Itália do pós guerra, era proibido vender cadernos aos domingos, mas Valéria ficou encantada com os cadernos pretos na vitrine da tabacaria em que fora comprar cigarros para o filho. Entusiasmada com a visão do caderno, sentiu-se invadida por um sentimento, uma alegria infantil, ao figurar antecipadamente seu nome escrito na primeira página. A expressão severa do dono da tabacaria lembrava à personagem a proibição de vender cadernos, mas ela insistiu, suplicou, de modo que ele deslizou o volume escondido pelo balcão, gerando em Valéria outro sentimento inusitado. Da alegria infantil outrora experimentada em outra época da vida, como uma liberdade esquecida, ela agora sentia o rosto afogueado pelo segredo que portava escondido embaixo de seu casaco. A proibição presente no tom de resposta do dono da tabacaria havia fundado nela a percepção de uma outra liberdade, talvez ainda nunca experimentada, do segredo. 

As primeiras notas que tomou em seu diário foram relatos de sua luta em ocultar o caderno, permitindo a Valéria se dar conta que sua casa, percebida inicialmente como um lugar acolhedor, não comportava um espaço sequer para sua singular solidão. Ela percebeu, com angústia crescente, que quanto mais tentava fundar um esconderijo para o caderno e para os instantes de sua escrita, mais se dava conta de como ela, Valéria, não existia naquela casa. 

Quem habitava o lar com muita satisfação era a mamãezinha, jeito que o marido passou a chamá-la depois de uns anos de casamento, nomeando a sua versão familiar. Naquele espaço burguês decadente da Itália, Valeria havia perdido o direito ao seu nome. Chamava-se agora mamãezinha, esposa, mãe e dona de casa de sua família. O caderno marcou, em segredo, o primeiro prazer recobrado de um período infantil em que seus objetos podiam carregar seu nome, em que ela mesma podia lembrar-se uma versão de si mesma que fez questão de esquecer nos mais de vinte anos de casamento. 

Virginia Woolf, no clássico Um quarto só seu, escreveu sobre a importância de as mulheres terem um espaço de escrita só delas para discutir sobre a escrita de ficção num evento de escritoras mulheres. Durante muito tempo, o mercado editorial questionou porque as mulheres só escreviam de forma autobiográfica. É preciso tempo e espaço para criar, diziam as escritoras dos mais variados gêneros literários. Marguerite Duras, em Escrever, deixa claro a necessidade das mulheres escreverem sem compartilhar com seus amantes os escritos. Gloria Anzaldua nos relembra a quantidade de mulheres que não escrevem pelo excessivo trabalho de ser mulher, cuidar do lar, lavar louça, funções que não se encerram ao fim de suas execuções, pois se renovam ao infinito pelas vidas das mulheres e seus lugares sociais incorporados. 

Talvez não seja mais a sociedade que imprima essa norma à novas gerações de mulheres, mas, como podemos lembrar com a personagem de Valeria, é a norma que está agarrada ao corpo e já não de desnaturalizar com qualquer luta feminista. Entre as brigas que Valeria enfrentou com sua filha Mirella, estava o centro do debate feminista entre gerações. Mirella se tornou advogada por desejo, afirmando seu uso da liberdade feminina e criticando sua mãe por não usufruir do mesmo direito. Enquanto isso, Valéria escrevia em seu caderno todos os nós que a amarraram numa ideia de mulher que ela mesma nunca parou para pensar, pois foi filha de uma geração que muito bem doutrinada a obedecer e servir sempre. 

Se sua filha conseguia recusar tais heranças simbólicas, o feito era resultado da mudança social operada após a guerra, em que as mulheres passaram a ser bem vindas no campo do trabalho, e não por alguma transmissão de liberdade individual realizada por Valéria. Ela se agarrava à estandartes morais de alto rigor as quais nem ela mesma acreditava, mas que transbordavam incontrolavelmente de sua boca, sem pensar. Assim, Valeria descobriu a raiva da liberdade da filha, o ódio por sua insubmissão, porque descobriu o quanto eram estranhas uma à outra, o quanto essa infamiliaridade provocava em Valeria um exercício indesejado de pensamento sobre sua vida, aos quarenta e três anos, colocando-a num conflito de gerações que lhe soava angustiante e insuportável. 

Quanto mais escrevia no caderno e exercitava o relato de seu dia e de seu esforço para escondê-lo, mais ela se via lançada ao jogo de mentiras que vivia em sua casa. A escrita proibida fundou em Valeria um novo modo de olhar para sua intimidade familiar, de um modo estrangeiro. Percebia a distância e a solidão dela e do marido. As mentiras que eles encenavam para manter as coisas como eram. O esforço que imprimiu na construção daquela fábrica de bonecos. Havia um automatismo em seus movimentos cotidianos e quando tentava quebrar com esse circuito estabelecido, percebia que todos os participantes da casa forçaram-na a retornar para seu lugar comum, de modo que eles também pudessem seguir os deles. 

Uma das maiores descobertas de Valéria estava no modo como fez do seu sacrifício o estandarte de seu valor moral feminino. É porque estava sempre cansada e não escondia seu cansaço, que vivia em paz com suas escolhas de vida. Ela revelou ser esse o motivo pelo qual nunca de fato decidia repousar, pois tinha medo de perder a única felicidade do seu dia, quando sentia o cansaço. Esse sentimento fez parte da decisão de se contentar em ser menos do que um dia desejou. O que sobrou irrefreável e indecifrável para Valéria, dessa equação de existência, foi apenas o que apareceu no espaço aberto da vida na rua e das folhas em branco do caderno. Nesses espaços em que a realidade fictícia de seu lar se tornava uma distante perspectiva minúscula da vida, Valéria sentia vontade de viver uma outra vida fora de seu itinerário cotidiano. Sonhava em adentrar o desconhecido que tanto a perturbava e excitava. No entanto, havia uma outra força íntima, uma condição autoimposta que a mantinha costumeiramente sempre a mesma, obediente por vocação. 

Quanto mais escrevia e fundava uma outra realidade que furava suas antigas e fictícias certezas, mais ela sonhava com um quarto só para ela. Um espaço qualquer em que pudesse ficar sozinha para pensar. No entanto, esse tempo durava pouco, enquadrado, roubado, proibido como o caderno, pois durante o dia sua vida seguia com a imagem que ela havia criado com muito trabalho, mesmo que não a espelhasse mais. 

Não a reconheceriam se fossem apresentados à versão de mulher que ela inventava em seu caderno, essa que pensa sua realidade e torna-se outra a cada página preenchida em segredo. Que devaneia cada vez mais com a entrega à desordem, ao caos, sentindo-se quase embriagada por esse desejo. Com esses desejos, devaneios e versões de si, acalentava seu sono e adormecia escrevendo, lidando com esse desejo violento e voraz de conduzir sua vida em outra orientação. 

No entanto, com a toada e o ritmo de sua escrita, percebemos que a cada força de desmoronamento e perda de si que ela escreve, quanto mais honesta ela escreve sobre seus desejos e afetos, é com maior força ainda que acorda no dia seguinte e se ancora com mais rigor ao cotidiano, aos seus papeis e inescapáveis modos de vida. Mesmo sabendo que a vida de cada um daquela família é um enorme mistério para eles mesmos, mesmo sabendo que eles se defendem sobremaneira uns aos outros como inimigos, mesmo assim ela se agarra satisfação de sua função na casa e na cozinha. E quanto mais se liga aos seus deveres, aos seus limites, maior se torna o desejo de escrever. Assim, Valéria se dá conta que a linha entre a bondade e a crueldade, entre a moral cristã e o sadismo, são tênues, quase invisíveis. 

Ela demorou trinta anos para se tornar quem era aos quarenta e três anos e agora desejaria ser uma outra pessoa absolutamente nova? Mas talvez ela quisesse apenas ter um quarto só seu! 

Leia: O caderno proibido – Alba de Cespedes

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2025) Caderno proibido. Em: www.alineaccioly.com.br

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