Nós, mulheres

Em algum momento do meu processo de análise, lembrei de uma amiga que fiz na escola quando estava na sétima série. Com ela, li quase todos os livros da Agatha Christie, escrevi um resumo do livro “O mundo de Sofia” e ainda guardo algumas bobeiras que escrevíamos para fazer o tempo das aulas chatas passar mais rápido. Um jornalzinho, em especial, virou a lembrança de um tempo bom onde sonhávamos em crescer e trabalhar com escrita para viver entre livros.

Nunca soube ao certo como nem porquê, mas nossos caminhos se separaram depois daquele ano. Não tínhamos internet nem redes sociais e algumas amizades ainda ficavam constrangidas pelos espaços escolares, a depender da sala que estudávamos. Criei uma versão dessa separação que se relaciona ao caminho que meu desejo pela escrita e pelas mulheres se tornou após aquele tempo. Eu gostava das minhas amigas e tinha vergonha do jeito que gostava delas. Sabia que não era recíproco, mas tinha certeza da estranheza do meu afeto quando elas arrumavam seus primeiros namoradinhos. Constantemente sobrando, aos quatorze anos, decifrei que precisava também ter um namoradinho para estar habilitada a seguir com elas e ter os mesmos assuntos. 

Foram muitos anos de análise relendo esse momento específico da minha vida e tentando entender porque escolhi essa via. Por que supus que tinha que entrar nesse coletivo de mulheres, incorporar seus ritos e mitos, para ter meu passaporte carimbado a um lugar de tortura chinesa? Que valor era esse de poder estar com elas mas sempre de fora, sem realmente nunca poder estar com elas? Gastei um tempão da vida tentando cifrar um modo de estar com os homens, criando estratégias para me servir dessa lógica de grupo com minha sexualidade arredia. Decidi que era melhor e mais rápido servi-los, para que sobrasse tempo para as minhas coisas. 

Há cerca de vinte dias, Vanessa Barbara me encontrou numa caminhada no parque. Estava escutando Rádio Novelo Apresenta, o episódio “CPF na nota”, e fiquei totalmente capturada pela história da jornalista que foi vítima da misoginia estrutural de uma rede de editores do meio literário. Ela descobriu a traição do marido e puxou o fio da rede que o sustentava. Os homens são esse grande pacote premium de machismo, com gaslighting, mansplaining, e toda sorte de jogos manipulativos que são transgeracionalmente transmitidos e dos quais eles gozam de saber utilizar. Fiquei pensando na minha história, no meu caminho, e em cada mulher que tem coragem de contar sua história. Fiquei fisgada naquele lugarzinho meu que ainda não teve essa mesma coragem. 

Quando cheguei em casa e busquei a foto da Vanessa no Google, um turbilhão de memórias se agitaram pelo meu corpo. Era Vanessa, a minha Vanessa da sexta série, A Vanessa! Fiquei muito feliz, exultante, e procurei o instagram para mandar uma mensagem cheia de vergonha, mas com um desejo enorme que ela lembrasse de mim. Fiquei mega feliz de descobrir que ela seguiu o caminho do sonho em comum que tínhamos! Ela havia mesmo se tornado jornalista e já tinha publicado vários livros! Essa alegria, no entanto, virou tristeza, ao me dar conta que nossos caminhos, por mais diversos que tenham sido, não nos protegeram das violências machistas estruturais. 

Por muitos anos, em análise, me culpei e me estranhei pelos caminhos de medo que decidi trilhar. Escondi minha sexualidade muito bem escondida por muito tempo e com isso perdi a possibilidade de publicar o que escrevia. Esse segredo crucial da minha vida me impedia de publicar qualquer texto que surgisse causado desse meu lugar mais íntimo de desejo, então fui criando uma vida sexual-amorosa que passasse bem longe disso. Aprendi estratégias, jurei mentiras e segui sozinha em várias relações. Profissionalmente, escolhi trabalhar com o único lugar que acolheu minhas meias verdades encabuladas, a psicanálise. O que também se tornou uma ótima desculpa para não ficar falando da minha vida, para manter certas histórias guardadas em envelopes e cadernos escondidos pela casa. 

Passei por muitas histórias terríveis com homens dos quais nem lembro mais o nome e me casei com o único cara legal que encontrei no meio do caminho. Construímos uma família  e uma amizade que se tornou nosso lugar seguro do mundo, mutuamente. A gente se gostava na nossa estranheza, a ponto de compartilhar nossos segredinhos. Ele sabia do meu desejo por mulheres e eu do desejo dele de trilhar um caminho não convencional aos homens. Depois que tivemos coragem de nos separar e lançar nossos corpos ao mundo, acho que vivi os acidentes e desastres mais difíceis de serem contados . Porque foi também no campo psicanalítico que sofri as duas piores e maiores cicatrizes de violência com homens: um estupro de um professor de psicanálise da universidade onde fiz mestrado e, pouco tempo depois, uma relação abusiva com um psicanalista que estudou comigo durante o doutorado, permeada de estupros, abusos morais, abortos, violência física e psicológica.  Mas, você se pergunta a essa altura: por que sair de um casamento para ter coragem de viver o desejo e acabar caindo nessas redes de abuso?

Eu me apaixonei por uma mulher. Posso dizer que vivi uma vida apaixonada platonicamente por mulheres, mas essa foi especial. E descobri, com esse desejo, que não tinha ferramentas para vivê-lo. Foram anos e anos de análise para entender o medo enorme que tinha de assumir meus desejos como causa irremediável do meu caminho e lutar qualquer luta necessária para aprender novas estratégias. 

Paradoxalmente, quanto mais eu ajudava mulheres, na clínica, a tomarem seus desejos como bússola e seguir em frente, uma parte de mim acreditava que meu tempo já tinha passado. Eu acreditava, como disse Vanessa em seu podcast, que estava segura em certas relações e segurança era bom e importante em um mundo de homens. E a tristeza abissal que senti quando descobri Vanessa e sua história, foi por perceber que não importava o caminho que uma mulher tomasse, fosse ele com o desejo ou desviando dele, não era exatamente esse aspecto que nos salvaria da estrutura social. Todas nós passamos por alguma história maior ou menor de abuso, independente da nossa orientação sexual, desejante ou estrutura psíquica. 

Foi nesse momento que a tristeza cedeu lugar ao alívio. De fato, nunca escapamos da estrutura e isso não é um dado singular, é universal. A nossa singularidade, aliás, é o que sobrevive e nos salva através da fala e da escrita, ao encontrar outras mulheres para fazer comunidade de solitárias pelo caminho, cada uma com sua história ruim sobre o mundo como ele é. Passei anos sem querer falar sobre isso, porque não gostava da ideia de ser etiquetada de vítima, de histérica denuncista, de burra. Mas esses são os predicados dados pela estrutura universal, não nos cabem. Nossos nomes são Aline, Vanessa, Paula, Gisele e tantos outros nomes que contam histórias singulares de mulheres que tentam encontrar saídas, boas ou ruins, para escrever seus caminhos. 

Foi essa psicanalista que me construí para exercer meu ofício, de alguém que escuta o singular de cada narrativa, de cada decisão, de cada descaminho. E é essa escritora destemida que estou me autorizando finalmente a ser nos últimos anos, sem vergonha da história que escrevi, a despeito dos terrores encontrados pelo caminho. E é como uma mulher que me orgulho de ser a cada dia que acordo, por amar mulheres que têm coragem de viver, dia após dia, em um mundo que não é feito para nós. Mas fazemos nós e abrimos fendas para cada uma de nós. 

Alegria, tristeza, alívio. Senti tudo isso e mais um pouco em menos de duas horas, sob efeito da escrita e da voz de Vanessa ressoando em meu corpo. Esse é o poder que temos, quando abraçamos a coragem e seu gosto de guarda-chuva.

Esses dias a Vanessa me respondeu, ela lembra de mim! Sorri, como quem celebra os encontros proporcionados pela escrita no meio do esgoto da civilização. No meio dos dejetos, ainda há desejos a espera de serem transformados em letras.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2025) Nós, mulheres. Em: www.alineaccioly.com.br

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