Trânsito

Acordo com o barulho ensurdecedor do despertador, que marca seis horas da manhã. Meus olhos parecem conter areia, mal abrem. Levanto meio cega e, ainda no escuro, passo desodorante, visto a roupa e sigo para o banheiro. Escovo os dentes e desço as escadas. Já dentro do carro, o relógio marca seis horas e vinte minutos. Como pode o tempo passar tão rápido? Preciso chegar ao trabalho antes das sete, para evitar multa de rodízio. 

Saindo da zona norte de São Paulo, pego a saída para a avenida vinte e três de maio. Tudo parado. Vou pegar o horário do rodízio, a essa altura já tenho certeza. Mudo a estação do carro para escutar as notícias do trânsito, quem sabe ainda consigo alterar a rota? Na rotatória da Santos Dumont ninguém abre passagem. Vou enfiando meu carro aos cotocos e uma mulher, num carrão de luxo, abre o vidro para me xingar, porque embiquei a ponta do meu carro a força para abrir passagem. Ela me chama de pobre, com um nojo que quase a faz babar entre os dentes, enquanto avança com o carro, falando coisas que não entendo. Suponho que seja um blá blá blá sobre sua supremacia econômica, porque ela prefere fuder com nossos carros do que me deixar passar. 

No final da manobra, o carro dela sai arranhado e meu carro, de pobre, segue intacto. É um Uninho, um carro cuja engenharia não sabemos explicar. Carro de pobre mesmo, que a gente consegue comprar porque divide em setenta e seis parcelas a perder de vista. Mas você já viu os impactos que um Uninho aguenta? Chegam a fazer piada! Carrinho forte esse meu, de pobre. Me torno forte também, com meu sorriso debochado. Por alguns segundos, sinto que ela vai sair do carro, agora na minha frente, pra me bater, mas o trânsito anda e eu vou logo mudando de pista. 

No caminho, faço a maquiagem, arrumo o cabelo, passo um esmalte na unha. Chego atrasada no trabalho, sete e quarenta. Quantas multas de rodízio devo ter tomado nesses quarenta minutos? Entro no Banco, arrumo minha mesa e vou lembrando de todas as pendências do dia anterior. Agora eu vou passar oito horas sorrindo para as donas de carro de luxo que me tratam como lixo. Eu preciso sair desse lugar. Eu vou morrer assim. 

Acordo de um pesadelo em que tinha voltado a trabalhar no Banco. Entrava na agência, sentava na mesa de trabalho e na hora de fazer login com meu número de matrícula dava erro. Meu cenape tinha mudado. Os números eram os mesmos, mas a ordem era outra. Isso me faz constatar que estava num sonho, porque na realidade do banco nada nunca muda, os números de registro são sempre os mesmos e todo dia é sempre igual. Mas, se estou num sonho, posso aproveitar para matar saudades das pessoas. Ao descer as escadas, procuro Ana, minha primeira gerente operacional. Anna também foi o nome da mulher que amei. Queria dar um abraço e dizer que sinto saudades, mas não dá tempo. Acordo enquanto ainda estou descendo as escadas. Elas estavam íngremes e curtas demais, não cabiam meus pés, pensei que ia escorregar se insistisse. 

Quando abro os olhos, sinto o peso das pálpebras inchadas. Fiz uma cirurgia no dia anterior, o inchaço do corpo deve ser resultado de algum efeito pós operatório. Caminho até o banheiro, ainda sem enxergar, e tento não me esquecer do sonho, para não esquecer daquela realidade. Eu só tinha dezenove anos e já conhecia o inferno. Mas o salário pagava bem. E quase morri assim. 

O rosto da mulher no espelho está inchado, meio amarelado. Mesmo depois de dormir bem por três dias seguidos, as olheiras seguem profundas, firmes e fortes. Sempre soube que elas não eram de sono ou cansaço, apesar de ter um certo prazer e graça em dizer que já nasci cansada para esse mundo cão. Minhas olheiras são como sombras da opacidade do mundo refletida nos meus olhos. É meu traço, meu jeitinho.

Essa mulher de quase quarenta e três sou eu, agora sem um pedaço do útero. Sorrio. Bem vinda de volta ao mundo, estranha familiar! Você sobreviveu ao inferno. Porque você só tinha dezenove anos e um corpo que se achava forte, como um Uninho de pobre, que aguenta tudo. Hoje, com um pedacinho a menos, você ganhou um tempo a mais de vida e pode sentir a leveza de ser mortal. É sempre por um triz que a gente vive um passo a mais. 

Nesse trânsito da vida, meus números de matrícula ainda são os mesmos, mas agora eles se equacionam em outra ordem. Do Banco, ficou o aprendizado com a matemática, as equações, os números e o primeiro registro social como cidadã do mundo. Carteira assinada, plano de saúde, passei a contar como gente, para fazer uma vida de desejo caber numa vida destinada ao desaparecimento social. Nos bastidores escorregadios, aprendi as trapaças do sistema para usar contra o próprio sistema. Afinal, um pobre letrado em economia e jeitinho faz milagres! 

Da(s) Ana(s) ficou só a saudade do amor em terreno inóspito. Não salvei grana, mas colhi uma grama dela(s) nas memórias que visito, ao dormir. Passeio pelo enigma de tentar encontrá-la(s) e nunca conseguir chegar, o que me faz desistir e distrair com anagrama(s), na possibilidade de brincar com as letras e fundar outro sentido para as palavras que nunca puderam ser ditas no meio de tantos cálculos. Hoje sei o valor das palavras. E alguém que sabe escrever, subvertendo as letras, pode mudar seu destino. 

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2025) Trânsito. Em: www.alineaccioly.com.br

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