Amanhecer em solidade

*texto lido no primeiro encontro do Ler in’comum (Outrarte 2025) 11/04/2025

H(a) céu aberto, quatro singularidades quaisquer habitaram um espaço de vizinhança, em Belo Horizonte, ousando sonhar com o pertencimento a leitura, a escrita e a clínica:  Aline, Lucas, Patrick, Kaio. Arrebatados pelo espetáculo de letras flamejantes que coloriu o céu da psicanálise com literatura e lituraterra, passaram à comemoração de uma comunidade que existiu por três dias – na contingência do encontro de corpos falantes e auscultadores do tumulto de lalínguas. Nossa pequena comunidade nasceu inconfessável na noite que abriu a possibilidade de nos tornarmos partes do zumzumzum que havia nos contagiado durante o dia, sem pedir licença para ser transmitido secretamente à noite.

Não encontramos repouso após o testemunho de um desejo incomum. Começamos a escrever quatro meses depois, numa manhã de sábado, inaugurando outro tempo de composição. Despertamos no sonho à espera de ser lido em seu caráter enigmático, cifrando um traço do nosso desejo em partilha. 

Um ano antes, Patrick e eu havíamos nos esbarrado ao pé de uma das portas de Clarice Lispector, em Felicidade Clandestina. Escutamos, em nossas leituras do conto, o sussurro de uma filha desconhecida – nomeação que tiramos do próprio texto de Clarice, como um outro nome possível para a menina gorda, lida universalmente como a presença do impedimento sádico que desviava o acesso da menina leitora ao encontro amoroso com um certo livro. A filha desconhecida mantinha-se à porta entre dois mundos: dobradiça entre o universo de sua casa, de dono de livraria, e da rua – espaço dos mistérios das garotas desejantes de livros. Ela ressoava uma insistente negação e um adiamento, dia após dia: “não tenho o livro hoje, volte amanhã”. Após dias nesse movimento de fort-da, percebemos o lugar de impossibilidade figurado pela filha desconhecida, entre o tesouro de livros e a ânsia devoradora de leitura. Constatamos, com a entrada de um terceiro termo na cena (a mãe), a estranheza dos movimentos daquelas duas garotas em torno do impossível – à beira de uma porta que separa, unindo, o abismo de seus universos.

Um ano depois, quando as águas de março começaram a fechar o verão, não habitávamos mais a beira da porta de Clarice em busca de um desconhecido ponto de Felicidade Clandestina. Tampouco estávamos na tumultuada noite aberta dos letrados em arte e psicanálise. Havíamos descoberto o desejo de conceber, nós mesmos, a quatro mãos, uma porta: uma borda entre universos, capaz de transmitir a possibilidade de escrita do impossível – que abre o trânsito de línguas. Estávamos no coração do desejo que pulsa à invenção. Nos flagramos no impulso de dizer algo sobre a tarefa árdua de fissurar o muro dos solitários, criando uma porta de passagem constituinte de uma comunidade inconfessável. 

Falamos e falamos, embaraçados, até que uma palavra incomum saltou da boca de Lucas, em alfabeto inaudito: solidade. Solidade? Ela ressoou imediatamente em nossos ouvidos, provocando risos, instituindo o primeiro ato de escrita da divergência uníssona que nos rege – configurando, por efeito, o espaço do nosso encontro. Avizinhados pelo barulho das risadas, esse modo de proximidade testemunhou a passagem de uma letra viva que saltou do embaraço de ter que contar como uma singularidade essencialmente solitária ao abrir a porta de investigação da comunidade inconfessável. Solidão e comunidade tecem a palavra vibrante que esboça a formulação de alguma proximidade possível entre dois termos díspares, sem lealdade à imagem de sentidos que ela pode parecer significar. 

O que se seguiu foi uma chuva de traços, um banho de significantes, o mergulho nas ideias e ondas de textos ancestrais – referências que se precipitaram como resultado da manifestação do desejo até então inédito, já em transformação. Da palavra lançada ao acaso, seria possível construir uma porta clandestina no muro da linguagem? Uma porta que instaure, ao mesmo tempo, a divisão e a passagem de testemunhos dos efeitos de uma psicanálise viva no campo inaugurado pelo Outrarte? Como cernir o campo aberto que espacializa a instante de pertencimento acidental do corpo falante alíngua que o escreve?  

Em “A psicanálise e o Um-dividualismo moderno“, Marcia Rosa (2018) nos lembra que “a modernidade trouxe consigo o discurso da ciência e a possibilidade de admitir que, de palavras lançadas aparentemente ao acaso, é possível extrair uma lei interna – o que torna possível o surgimento da psicanálise”. No “Pós-escrito” de “A psicanalise leiga”, Sigmund Freud (1927/2009, p. 174) marca dois pontos estruturais e fundantes do campo psicanalítico: “Existe desde o inicio, na psicanálise, uma junção entre curar e investigar, o conhecimento trazia o êxito. Não se podia tratar sem experimentar algo novo. Não se ganhava nenhum esclarecimento sem vivenciar seu efeito benéfico. Nosso procedimento analítico é o único em que esse precioso encontro se mantém”. 

A junção entre cura e investigação só produziria algum conhecimento se algo novo fosse experimentado como efeito dessa operação. Esse traço novo da união, Jacques Lacan (1972-73/2010) leu na função da barra no algoritmo saussuriano – transformando esse elemento no ponto de impossibilidade de convergência entre o significante e o significado, que os liga como separação. Essa barra torna-se necessária a posteriori anterior, porque dobra e fura o espaço-tempo topologicamente, fundando o campo de lituraterra: uma escrita feita de rasura de traço algum que seja anterior, que do litoral faz terra.

A nosso modo, extraímos o traço de invenção como uma lei interna condicionante e necessária à nossa inscrição no campo psicanalítico. Mas, como bons parlêttres donjuanescos, trairemos a forma. Para transmitir o zumzumzum que nos enxameia desde que nos tornamos, contingencialmente, avizinhados por um desejo incomum de escrita, nossos escritos ensejam traduzir as cócegas – e não necessariamente a fidelidade das palavras – que se produzem na ponta de nossas lalínguas. É isso que transmite a vibração para a ponta dos nossos dedos: solidade e o que mais vier.

  Um mês depois da aparição de solidade, O solitude, de Catherine Millot, retornou como uma chave de leitura possível A comunidade inconfessável. Ainda que tenha sido George Bataille, segundo Blanchot (1983, p. 9), o responsável pela escrita da experiência moderna de comunidade incomum – definida como “nem obra a produzir, nem comunhão perdida, mas o espaço mesmo, o espaçamento da experiência do fora, do fora-de-si” – foi na escrita ensaística de Catherine Millot que fui fisgada: por seu estilo de leitura topológica dos abismos ordinários sem portar a bandeira do léxico lacan-lógico. É nesse caminho que entro com meu desejo de escrever sobre n’espace em comunidade.

Lucas inaugura a comunidade pela noite e oferece generosamente sua solidade como uma senha de passagem que deixa a porta aberta para nós – frente a frente com o desconhecido. Meu ensaio por esse espaço in’com’um e desconhecido contará com Abismos Ordinários, de Millot, e também Ó solitude, para fazer cair o fantasma de um supereu teórico – equívoco do meu primeiro movimento de filiação ao campo psicanalítico. 

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2025) Amanhecer em solidade. Em: www.alineaccioly.com.br

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