Mini-essências

*Texto lido no segundo encontro de Ler in’comum (Outrarte 2025) em 09/05/25

“Tantas palavras, meias palavras, nosso apartamento, um pedaço de Saigon”. 

O trecho da música, cantada por Emílio Santiago, embalou minha imersão nas letras de Patrick, texto–bilhete de passagem às memórias infantis. O acalanto da voz negra e carioca ainda ecoa em um corpo marcado pelo estilhaçamento de um certo “eu” que um dia reinou como senhor da história que me escreveu. Despossuídos, esses estilhaços mitológicos iteram ao som da convocação à navegação pelo mar da nostalgia que Barbara Cassin e Patrick nos convidam a navegar. 

Ao mergulhar no tempo da nostalgia, descubro que não se trata apenas de um lugar antropológico e nem mesmo um lugar antigo da história, pois esse instante é  provisóriamente circunscrito por uma visita inesperada, como de um toque no tambor (“A uma razão”, de Arthur Rimbaud): 


“Um toque do seu dedo no tambor desencadeia todos os sons e dá início a uma nova harmonia.

Um passo teu recruta os novos homens, e os põe em marcha.

Tua cabeça avança: o novo amor! Tua cabeça recua, – o novo amor!

Muda nossos destinos, passa a crivo as calamidades, a começar pelo tempo, cantam estas crianças, diante de ti. Semeia não importa onde a substância de nossas fortunas e desejos, pedem-te.

Chegada de sempre, que irás por toda parte”.


O poema de Rimbaud foi apresentado por Jacques Lacan no seminário do Ato Analítico, como fórmula do ato de emergência de outro regime de partilha da linguagem. A linguagem pode decidir a forma da experiência e sua gramática de afetos, mas a singularidade do traço da memória irrompe no corpo revelando outra razão. A “raison” que desperta do toque do tambor vibra exigindo ouvidos para acolher o retorno dos gestos sonoros que permanecem ecoando no tempo e no espaço de um corpo. 

Nesse “espaço de trânsito” que chamamos corpo, vozes e ruídos são restos invisíveis que nos visitam como reminiscências: são sem qualidades, fragmentos desgastados, quase apagados, vestígios de algo que não existe mais, “pedaços de Saigon” que restaram da zona de conflitos ao qual nos tornamos estranhamente familiar.

Para Freud, a reminiscência é uma expressão da memória que recusa o saber inconsciente: 

“Nossas lembranças infantis mostram-nos nossos primeiros anos não como eles foram, mas como nos apareceram nos períodos posteriores em que as lembranças foram despertadas. Nesses períodos do despertar, as lembranças infantis, como nos acostumamos a dizer, não emergiram; elas foram formadas nessa época.” (Freud, 1898/1969, p.354). 

Freud revela o caráter encobridor das lembranças, pois são formações inconscientes que constroem ficções de verdade nas lacunas – nos espaços dos acontecimentos traumáticos à espera de tradução – que cernem, portanto, os momentos cruciais de decisão e escrita do sujeito. O essencial de uma reminiscência é menos o que ela aparenta comunicar, mas o que nela é testemunho desfigurado da história de uma escrita. Não se trata mais da história que um mito escreve, mas da própria arqueologia de um tempo de escrita. 

“Já morei em tanta casa que nem me lembro mais, eu moro com meus pais”. 

As músicas saltam, uma a uma, nesse retorno ao lar, pois tecem o desenho dA casa que morei por meio dos ruídos que restaram nos escombros de sua demolição. Corrijo-me: “A” casa não existe”. Não morei em uma, mas em dezenas de casas entre o Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Exausta das despedidas a cada mudança, decidi abandonar a ideia de pertencer a casa, ao bairro, aos vizinhos. Preferi morar nas músicas que estavam sempre tocando na vitrola ou em alguma rádio. Elas eram a presença constante da transitoriedade e da impermanência, uma companhia na zona de guerra configurada pelos constantes conflitos presentes nas idas e vindas dos meus pais em busca de uma vida melhor. 

Distraída, eu costumava cantarolar alguma música em inglês e às vezes percebia, de canto de olho, a diversão dos meus pais em me assistir cantar errado. Em poucos segundos, minha mãe se apressava em corrigir a pronúncia das palavras conforme a letra correta. Ela é linguista e nunca suportou o embromation, que funciona como um improviso entre línguas, um modo de assumir o canto das palavras sem a fidelidade ao léxico ou ao campo semântico, tornando-se apenas uma forma de lalação sonora que permite a fidelidade a forma da canção sem referência à letra. Meu pai, declaradamente ignorante nas línguas estrangeiras, brincava que nem o português sabia falar direito e não se interpunha nessa zona de conflito. Autorizava-se à licença de transformar qualquer espaço da música em uma entoação do nome de minha mãe. 

Pertencer a língua materna é a própria constituição do campo traumático, a alienação necessária para nos tornamos humanos, seres da nossa espécie, e para, também, inventarmos um modo singular de ser-aí como um não-sendo constantemente renovado. É desse espaço que fazemos nossa morada, como toda dor e delícia que essa construção pode nos afetar. Na zona de Saigon, entre a língua portuguesa radicalmente correta da minha mãe e a brincadeira de escrever o nome dela em qualquer buraco da língua, do meu pai, eu desejava rasurar um espaço. Decidi habitar as dissonâncias, escrever uma gramática de fissuras para ser ruído

 Entre gramáticas díspares, eu escutava as músicas. Tirava as letras do som e, ao transcrevê-las no papel, extraia o insubstancial jeitinho do cantor, anotando onde juntar fonemas, como alocar uma respiração, em quais instantes aumentar ou abaixar o volume da voz. Me orientei pela leitura dos arranjos e nessa encruzilhada desconcertante aprendi a fazer do canto desses cantos uma casa. Só mais tarde descobri a palavra que traduziria esse lugar de encanto na linguagem: lalíngua.

É Lacan quem abre a entrada de outro termo a série Língua, Linguagem e Fala – Lalíngua: “aquilo por meio do qual há tanto língua quanto inconsciente” (Milner, 1978/2012, p.26) Lalíngua não é um corpo, mas uma multiplicidade de diferenças que não tomou corpo. (Soler, 2009). É o eco da língua, por isso “não é um conjunto, não é uma estrutura, nem de linguagem nem de discurso, pois não há ordem em lalíngua”. (Soler, 2009) Lalíngua tem a ver com a língua materna, pois ecoa lallare – verbo latino que designa o fato de cantar lá-lá para adormecer crianças e se torna, mais tarde, o balbucio da criança que ainda não fala, mas já produz sons. (Sousa Jr., 2023, p. 62). Lalíngua é o registro do equívoco que se manifesta na dimensão da fala, no dizer em meias palavras incessantes tecidas nas nossas interlocuções. 

Walter Benjamin, em Si parla italiano (Rua de mão única), conta que estava sentado em um banco com fortes dores, quando duas moças sentaram-se e começaram a sussurrar, em tom secreto. Diante do cochichar sem motivo das moças, numa língua estranha a ele, que não falava italiano, teve uma sensação de que “uma ligadura fresca [o] envolvia a zona dolorida”. (p. 56) O sussurro inteligível funcionou como uma atadura na zona de dor difusa no corpo. Talvez esse seja o modo mais poético como penso a função de cura que a escuta do puro som ao qual busquei abrigo me serviu de cura para a dor de existir. 

“Tantas palavras, meias palavras, nosso apartamento, um pedaço de Saigon”

Hoje, quando escuto músicas, é como se desertasse do mundo e passasse a revisitar esse primeiro lugar, um não-espaço possível da minha errância: embromation. Afinal, o não-espaço entre línguas é a morada de lalínguas em trânsito. “Esse lugar do mal entendido constitutivo entre o próprio e o estrangeiro”, nas palavras de Cassin (p.41), “é a marca, o sinal firme, do alhures”, pois “não há certeza do alhures sem redução ao idêntico, e não há certeza do alhures sem consciência dessa perda que produz a assimilação”. 

Arendt nos ensina a desfazer a ligação entre língua e povo de forma radical para pertencer ao que restou. Em seu caso, não se tratou mais de pertencer ao alemão tomado pelos nazistas e seus brados nacionalistas, muito menos à língua estrangeira que acolhe os refugiados. O sotaque, ou a “maneira idiomática” com que ela não pertence mais ao alemão e nem ao inglês é o modo com Arendt cultivou e coloriu sua escrita, em textos que criam um ritmo próprio, entre o som e a sintaxe, como quem experimenta ser “gago nas duas línguas”(p. 73). Pommier (Em O amor ao avesso, p. 76) nomeia o inconsciente como um gaio saber que se faz ouvir como uma cacofonia frequentemente absurda. 

Mas, quais são os efeitos de habitar os restos da língua materna? Segundo Cassin, (p. 74) o lugar dos restos circunscreve um ponto limite da possibilidade de inventar. Entre limite e invenção, há um ponto-borda. Nesse não espaço, bordejado, “Cada locutor é um autor em sua língua e de sua língua”. Por isso, desnaturalizar a língua materna, eis o que, no final das contas, a salva, sempre. (p. 85)

Talvez eu tenha aprendido, desde muito nova, a admirar e temer as formas tão distintas de usar a língua de meus pais, e só mais tarde tenha conseguido nomear que foi na distância entre elas que extraí uma marca de fundação, cicatriz de guerra que sobreviveu no campo de Saigon. 


“Há gestos que achamos que não nos pertencem, decisões arriscadas que nos definem para a vida inteira, enquanto não nos damos conta de que eram nossos desde o princípio, que os controlávamos e possuíamos. Não eram acidentes, mas sim traduções de uma língua mais profunda. Se foram negadas ou atribuídas a algo alheio a nós mesmos, é simplesmente porque foram interpretadas erroneamente”. (Durastanti, p. 48.)


É o toque no tambor que muda tudo, radicalmente, pois torce e decompõe o sentido e permite ressoar a deformação que o sujeito opera na língua a qual se aliena. 

Do lugar de leitora das dissonâncias da língua no som, permaneci “deslinguada” por muito tempo, para usar uma expressão de Sylvia Moloy. Passei anos tentando esconder meus defeitos de dicção para evitar ser corrigida. Precisei aprender a colecionar lalínguas, que me fascinavam na andança pelo sudeste, para um dia reconhecer-me lacaniana, ao descobrir que  “lacaniano tratar-se daquele que escuta resíduos de lalíngua não compartilhável” (Souza, 2022, p.214). 

Ainda hoje, quando as (re)mini-essências me visitam, é como se encontrasse pequenos bilhetes escondidos e deixados nessas canções – moradas temporárias, como vestígios inconsistentes de uma língua morta, como o latim, língua materna de tantas outras línguas ainda vivas. Nessas visitas, há uma estranha familiaridade com esses ecos de uma história em que passei a maior parte do tempo como visitante, passageira. Essa era a história dos meus pais, que se cruza com a história ficcional da minha origem fundada na condição de passagem, sempre de partida em busca da próxima música.

Mas agora, tenho também escutado as línguas do mundo, exposto meu ouvido a ressonâncias que brotam das línguas, desfazendo seu tecido. À mercê do som, e não do sentido, busco “desfazer pela palavra o que foi feito pela palavra”, como afirmou Lacan no seminário “O momento de concluir”. O som, que descompassa a língua por meio da fala, incide como no poema “Paz” (Zhuãng Zi):


“Tudo ressoa, mal se rompe o equilíbrio das coisas. 

As árvores e as ervas são silenciosas: se o vento as agita, elas ressoam.

A água está silenciosa: o ar a move e ela ressoa.

As ondas mugem: é que algo as oprime.

A cascata se precipita: é porque falta-lhe solo.

O lago ferve: algo o aquece.

Os metais e as pedras são mudos, mas ressoam se algo os golpeia.

Assim também o homem. Se fala, é porque não pode conter-se. Se se emociona, canta. Se sofre, lamenta-se. Tudo o que sai de sua boca em forma de som se deve a um rompimento do seu equilíbrio”.  


Meu primeiro esforço consistiu em sustentar a forma do som que saia da minha boca. Precisei aprender a escrevê-lo. Como bem testemunhou Catherine Millot sobre sua relaçãom com a escrita, “escrever era me esforçar para ficar à beira dos abismos, o mais próximo possível dessa falha, desse ponto de turbilhão onde nasce a fantasia, e onde eu tentava agarrar a gangorra que vai da derrelição ao gozo, a este “vazio beatífico” do qual permanecia incuravelmente nostálgica” (p. 110). A página branca se tornou o lugar de retorno em busca do renascimento do som na palavra escrita.

No Seminário 23, o Sinthoma, Lacan afirma que “ A reminiscência é distinta da rememoração. […] A rememoração é evidentemente alguma coisa que Freud obteve forçosamente graças ao termo impressão. Ele supôs que havia coisas que se imprimiam no sistema nervoso, e lhes conferiu letras, o que já é dizer muito, porque não há razão nenhuma para que uma impressão se figure como alguma coisa já tão distante da impressão quanto uma letra. Já há um mundo entre uma letra e um símbolo fonológico”. (LACAN, 1975-76/2007, p. 127)

Assim, podemos pensar nas reminiscências não apenas como um sintoma ou uma lembrança encobridora, pois há uma concepção inteiramente outra do inconsciente, que, segundo Pommier (p.25), levaria a considerá-lo como uma memória enterrada. A (re)mini-essência pode ser uma manifestação incompreensível do inconsciente, pedaço de real que invoca a escrita de um saber que fica à espera de ser lido no tempo do seu retorno. Essa escrita não se orienta por uma forma de contar anterior, mas uma invenção que acontece enquanto se escreve de outra forma, em outro tempo diferente daquele de onde deixou-se cair. 

Lucas escreve: 


“o que fazem me pergunto

os bilíngues

quando abrem mão da língua materna

o que fazem com suas mãos

livres”


O que fazem? Com suas mãos, abrem a língua a mestiçagem. Escrevem um gesto que vibra o corpo. Assumem o canto das palavras. Com a ponta dos dedos, tocam o tambor e inventam algo contagiante: um novo amor. E “poemizam”, pois “É porque chega a um lugar desconhecido que está de volta à sua origem” (Cassin, p.53). Casa.

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2025) Mini-essências. Em: www.alineaccioly.com.br

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