Minto desde criancinha. Minha mãe diria que minto mal e porcamente e ela teria razão. Minto sem me dar ao trabalho de esconder que estou mentindo. Minto porque preciso me livrar imediatamente dos instantes em que me sinto encurralada pela demanda de alguém. Minto porque é mais fácil entregar qualquer resposta descaradamente desconfortável e ridícula do que palestrar sobre as razões éticas, morais e políticas sobre o que eu realmente gostaria de dizer. Minto porque às vezes tudo que eu queria era só ficar calada, sem ter que elaborar resposta nenhuma pra alguém.
São muitas e intermináveis as justificativas que invento para a mentira. O fato é que há um estatuto para a mentira ao longo da minha vida. Às vezes ela muda de roupagem, mas jamais mudou sua configuração. Quando assisti Carol e o fim do mundo, achei simpática a forma como ela mente para todo mundo. Especialmente quando o mundo se tornou um cansaço tedioso diante da ordenação de aproveitamento de tempo. Mas, voltemos à minha ficção particular.
Outro dia fui ao bar com um amigo. É um bar que frequento bastante, a ponto de já ter criado certos rituais de consumo. Trata-se, por exemplo, de beber de três a quatro drinks feitos de whisky ou tequila. Todo mundo que já foi comigo lá sabe desse meu hábito porque adoro rituais. Bebemos nosso primeiro par de drinks. Ele pediu o segundo. Depois o terceiro. A bartender, que já sabe meu gosto, veio me perguntar, preocupada, se o drink estava ruim. A essa altura, estávamos no tempo da terceira rodada e eu não tinha terminado o primeiro drink. Respondi que não estava bebendo muito e que aquele era meu primeiro dia bebendo depois de quinze dias. Meu amigo me olhou, surpreso, mas silenciou.
Aline, você mente! Disse ele mais tarde, quando já estávamos em casa. Nós bebemos juntos semana passada e você disse pra moça do bar que estava a quinze dias sem beber! Eu gargalhei, explicando que minto por preguiça. Especialmente quando a verdade que tenho a dizer é íntima demais, complexa demais, estranha demais. Rapidamente invento qualquer história apenas para escapar do desconforto e das expectativas alheias. (Em outro texto terei que explicar meu conceito de intimidade, esse é outro estatuto).
A mentira do bar está na categoria da preguiça, quando não quero oferecer intimidades para justificar meu funcionamento fora do padrão esperado em espaços sociais. Existe uma segunda categoria de mentira que envolve a operação de recalque. É quando eu esqueço um acontecimento e crio narrativas sem contar com ele. Freud chama isso de neurose, mas isso não vem ao caso. Sobre essa categoria, meu amigo me flagrou em crime quando viajamos à praia.
No carro, eu estava reclamando de não ter tido muita sorte em dois mil e vinte e três, pois quase não conheci mulheres interessantes. Meu amigo, sem graça, começou a listar algumas histórias que contei para ele no telefone (nos falávamos todo domingo desde que ele mudou de cidade, para dar o update da semana). Indignadíssima com sua listagem, berrei que ele estava enganado, que eu não havia saído para nenhum daqueles lugares. No entanto, no instante em que esbravejei minha raiva, as lembranças dos encontros, das conversas, dos beijos, dos desencontros, submergiram de onde estavam apagadas, como um fio que se revela de um novelo emaranhado. Tomei um susto. Comecei a gargalhar instantaneamente e pedi desculpas. Lembrei de cada pessoa, de cada cheiro, de cada risada. E de cada frustração e estranhamento. É verdade Rafa, eu saí com doze pessoas novas ano passado.
Voltando às categorias da mentira, eu catalogaria ainda uma terceira. Essa última acontece quando quero proteger meu corpo. Depois de viver transbordamentos afetivos, tendo a diminuir a importância deles na minha vida. Sobre essa modalidade, fui flagrada ontem por uma amiga que viajou comigo de férias. Ela me enviou uma mensagem após ler meu último texto, Litoral. Com uma imagem e uma interpretação do texto, ela recuperou o modo como eu sigo dividida entre a linguagem e a língua secreta do corpo, ignorando, assim, a luta que eu travo entre essas duas modalidades de escritas.
Na foto enviada figurava uma dedicatória que fiz no livro que a presenteei durante a viagem. Chorei, emocionada pela leitura articulada por ela e comecei a rir, na sequência. Fui flagrada numa mentira textual. Claro que escrevi na praia! Mais de um dia. A foto é testemunha de um breve escrito. Fiquei emocionada porque lembrei de nossas trocas e dos textos que estávamos coreografando com nossas palavras, caminhadas e silêncios.Lembrei de um esboço de texto que mostrei pra ela numa manhã e lembrei de um texto íntimo que ela me mostrou. Lembrei de muita coisa. Mas lembrei, principalmente, que as mentiras foram minhas primeiras formas de escrita autoficcional.
A mentira neurótica é um exercício de construção de mundos alternativos para encorajar a invenção, ainda que seja, ao mesmo tempo, uma certa covardia ou desistência do outro. Se já gostei de roubar objetos para inventar outras vidas com eles, hoje em dia economizo minhas palavras, histórias e justificativas para não ser roubada através delas. Não gosto de contar absolutamente nada sobre minha vida pessoal e, por isso, ainda hoje invento existências quando estou no uber, a caminho do aeroporto, e o motorista não me deixa no silêncio.
Autoficções inventam existências. Por isso, minhas mentiras não apenas me economizam, mas guardam com delicadeza algumas histórias que são reservadas apenas a raros momentos de intimidade. E, mais importante, criam realidades apaziguadoras que denunciam como a noção de realidade universal não existe. Essa sim é a grande mentira da civilização. Ao distorcer verdades impossíveis de serem compartilhadas em mentiras sinceras, criamos realidades que são mais reais do que as ilusões supostamente compartilhadas.
Talvez por isso eu goste tanto de escutar as mentiras sinceras que os analisantes contam em análise. Mentiras sinceras me interessam, como diria Cazuza. A vida real é sempre uma fantasia. Por isso eu prefiro as autorais e estilosas, em suas sutilezas. E vem aí o carnaval.
…
Em tempo: 1. Completamos hoje trinta dias de Desconcerto de Lalíngua!
2. Marília me ajudou a descobrir que há uma trilogia secreta nos textos já publicados. Ausência. Tsu. Litoral. A ordem você decide.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2023) Mentiras Sinceras. Em: www.alineaccioly.com.br
