Quando comecei a ler O romance luminoso, de Mario Levrero, não busquei qualquer tipo de informação sobre o livro. Aceitei, às cegas, a indicação de um colega que gosta dos meus tipos de livros e temas relacionados a escrita. Após ler as cinquenta primeira páginas, fiquei dividia entre a impaciência e a ansiedade produzidas pela escrita de Mario. Levrero, alias, é um dos tantos nomes que o escritor usou para publicar seus livros.
Empolgada, indiquei o livro para um amigo e lemos quase ao mesmo tempo, comentando nossos mal-estares a cada nova página do diário. Comecei a ler em janeiro e terminei dia primeiro de maio. Meu amigo terminou o livro cerca de vinte dias antes de mim. O colega que me indicou o livro, por sua vez, não terminou de ler o livro até hoje. Esse é o efeito obscuro do romance luminoso nos leitores.
Victor da Rosa, em um preciso comentário sobre o livro publicado na revista 451, intitula a obra como o diário de um procrastinador. Não acho que é para tanto. É, com certeza, o diário de um louco assumindo sua loucura cotidiana e como ela se torna sua única companhia no envelhecimento. Levrero se esforça para traduzir esses impossíveis (o envelhecimento, a loucura e a vida). Dentre todas as mulheres e prostitutas que Levrero descreveu ao longo de seu diário, a única presença feminina que permaneceu foi a sua loucura. Assim, isolados e inescapáveis, o louco e sua escrita coreografam seus passos, encontros e desencontros, sintomas, doenças obscuras e experiencias luminosas. Trata-se da descrição de um modo de existir e enxergar o mundo de quem sabe estar em colapso, enfrentando os possíveis últimos dias de sua vida.
Achei bonito o encontro final do autor com sua loucura e a insistência em tornar traduzíveis as tais experiências luminosas. O que eu entendi do “luminoso” são figurações fracassadas dos instantes inomináveis que nos marcam durante toda uma vida e que tentamos não esquecer para transmitir. Tratam-se de momentos em que a vida parece oferecer o vislumbre fugaz de um sentido, que é tão pessoal e intransferível, que no minuto em que tentamos testemunha-las, perdemos imediatamente o alcance do seu sabor e da sua textura.
Me comove que as experiências luminosas de Levrero tenham sido tão poucas! Mas, ao ao mesmo tempo, me identifico com a infimidade desse tipo de experiência. A vida parece, constantemente, uma luta interminável e Levrero toca essa peculiaridade tão bem escreve que nos provoca todo tipo de reação, resistência e mal estar. Seu testemunho é visceral e revelador demais. É demasiado humano.
É impossível ler o diário e não contabilizar nossas experiências vexatórias, loucas, obscuras e luminosas. A loucura desse homem toca as nossas, o grão que tentamos a todo custo catalogar, curar, sublimar (menos fazer germinar). Por isso, a leitura das seiscentas páginas constitui o testemunho da travessia final de Levreiro, luminosidade e loucura silenciosas de um homem envelhecendo apenas com sua própria sombra. É, sobretudo, a travessia do leitor pelas lacunas obscuras e luminosas de si que irrompem através das lacunas e da lentidão de Levrero, morosidade necessária para olharmos o vazio bem de pertinho.
Mario Levrero despertou em mim o desejo que nenhum outro diário de escritor havia despertado até hoje (e olha que leio muitos!): a coragem de escrever um texto que precisará de uma vida inteira pra ser escrito e não necessariamente será publicado antes da minha morte. Porque há escritos que não são procrastinados. Eles apenas precisam de uma vida inteira para existir. Quando o corpo se vai o livro nasce e só nessa condição ele pode ser concebido. Luminoso. Como os vagalumes.
Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) O romance luminoso. Em: www.alineaccioly.com.br
