Riscos de serrote

Dentre alguns acanhados instantes clandestinos vividos durante minha infância, retorno constantemente a imagem de uma pilha de fósforos, localizada no centro de um supermercado próximo a casa de minha avó. Enquanto ela contava o preço de cada produto para decidir o que podia levar, eu me distraia com as chamas instantâneas e fugazes dos fósforos, curiosa sobre os motivos pelos quais alguns duravam tanto tempo, com as chamas incandescentes, enquanto outros se apagavam fulminantemente. 

Tal memória retornou a meu encontro enquanto recolhia, dentre tantas palavras-fagulhas produzidas no nosso último encontro, as palavras-fósforo que permaneceram queimando e alimentando minha curiosidade acerca de uma questão: “Como reunir o disperso sem conferir a totalidade da escrita conceitual?” A pergunta, disparada por Flávia, posou em um fragmento adormecido de um manuscrito doutoral que escrevi durante os anos de dois mil e dezoito e dois mil e vinte e três: Como transformar o saber dos casos clínicos depois da passagem dos falasseres? O que faz uma analista com os pedaços ardentes de real que restaram?

No desejo de construir uma caminho às inquietações recém percebidas, busquei as palavras-fagulhas deixadas por alguns participantes: “superfícies borradas, imagens borradas, o efeito das lágrimas no papel, o efeito gasoso do fogo, o risco do serrote num sólido, imagens que não se pretendem toda”. Tais expressões ensaiam a formalização de substâncias que escapam a consistência, mas produzem efeitos consideráveis nas experiências dos falantes. Portanto, que substância dá consistência aos restos de uma análise quando esta retorna, aos pedaços, transformada pela ação do tempo? Como nomear e escrever sobre tal dispersão sem afogar com sentidos a imagem que um dia já ardeu?

O artista e fotógrafo Mitsy Queiroz parece saber fazer com tais imagens que retornam fora de seu tempo. Uma de suas obras, intitulada ‘Chá de revelação’, é uma fotografia que resistiu a passagem do tempo, permaneceu ardendo apesar de muitas ondas de enchente que constantemente invadiram a casa onde morava. A foto sofreu os efeitos do bolor, uma proliferação de fungos que encontrou morada entre o banho de águas de enchentes e o filme fotográfico que dava consistência ao retrato. Acostumado com os rituais analógicos de revelação dos filmes, Mitsy tratou o luto da única representação de seu corpo infantil do mesmo jeito que tratava seus filmes: aceitando delicadamente os banhos de água e luz e seus efeitos no corpo-filme fotográfico.

A cada novo dia, Mitsy voltava ao encontro da foto, em constante mutação, para ler o que se revelava através da forma que se impunha à consistência do antigo retrato. O artista deixou-se ler pelo retorno da fotografia, trinta anos depois, à espera de ser ele mesmo transformado pelas impressões compostas através do borrão recém nascido. Entre o instante da captura do momento figurado originalmente e a imagem metamorfoseada, Mitsy leu seu corpo, que passava por um processo de transição química de gênero naquele mesmo período. O fotógrafo acolheu a brutal descontinuidade e ruptura pertencentes a vida humana, com suas  mudanças e contingências que a estruturam, como uma nova referência para orientar as descontinuidades que estavam em acontecimento no seu corpo. Por efeito, foi desse emaranhado que pôde destacar um efeito-sujeito que emergiu como um fato dessa estrutura. Sobre tal emaranhado, retomo Freud, em “Interpretação dos sonhos”:

“Existe pelo menos um ponto em todo sonho no qual ele se torna insondável – um umbigo, por assim dizer, que é seu ponto de contato com o desconhecido. Durante o trabalho de interpretação, percebemos que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixam desenredar e que, além disso, nada acrescentam ao nosso conhecimento do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecimento. Os pensamentos oníricos estão fadados a ramificar-se em todas as direções dentro da intrincada rede de nosso mundo de pensamento. É de algum ponto em que essa trama é particularmente fechada que brota o desejo do sonho, tal como um cogumelo de seu micélio ” (Freud, 1900/2001, p. 125/507)

Freud (1900/2001) designou o umbigo (do sonho) como [unerkannt] – uma marca do insondável – no sonho, do qual cessa qualquer possibilidade de atribuição de sentido. O inconsciente seria, portanto, nãotodo decifrável, ainda que em cifragem constante. A palavra “Unerkant” torna-se, por conseguinte, a nomeação de um ponto descontínuo de acesso pela linguagem, uma forma de localizar a matriz de um nó vivo por onde surgem fios, ‘tecidos de falasser’, a partir de seu ponto de exclusão cifrada. 

Temos, então, a historicização de um mito (Imaginário) e a função da linguagem (Simbólico) designando essa ‘coisa’ que Lacan (1975b/2003) traduziu como o buraco [trou], o trou’matisme. Tal ponto insondável não indica o fim do alcance do sujeito, mas o lugar dos contornos, das transformações, da ausência no caminho. O trou não é, propriamente, o desejo ou seu objeto, mas o ponto zero inicial da escrita que inaugura o não-desejo cercado, inserido num conjunto simbólico que representa o desejo em sua generalidade. (Lacan, 1972- 1973/2010)

Ao desdobrar o desejo que brotava do mergulho no desconhecido, Mitsy construiu um caminho de passagem através das palavras, iniciando pela rememoração, verbalização e simbolização. Decidiu, posteriormente, abandonar tal suposto lugar originário de ser como referência e estabeleceu a possibilidade fecunda de escrever outra existência através do suporte imaginário, na criação de um mito a partir da referência lacunar e desconhecida que brotava incessantemente do velho novo retrato. Nas palavras de Mitsy:

“Esperei uma manhã de sol para voltar a escrever sobre um reinado úmido e a sedução de um quarto pouco arejado. No apanhado de estratégias para circular entre as dores e desfazer os seus nós, abro as camadas desse álbum como quem descansa às pressas um ovo quente debaixo da água corrente, supondo que as altas temperaturas dessa lembrança dessem conta de secar o chão molhado da casa que morei

Em tempos de chuva, o pequeno vão da sala se dividia entre baldes e panelas para recolher as goteiras que ali surgiam. A vigilância de não se permitir transbordar naqueles domingos era tamanha que, repetidas vezes, torcemos o enxoval, represando a cachoeira que abria caminho pelas paredes da cozinha. Já bem afastado dos interruptores, observava cair com muito sono os pequenos riachos que se encontravam e inundavam aquele primeiro andar. no dia seguinte, as paredes que revestiam a casa mudaram de cor, as colônias de mofo estouram em todos os cômodos e rompiam com suas camadas de tinta mais antiga. As paredes floresciam vibrantes entre verde musgo, oliva e bandeira, assistidas pelos fungos que ainda hoje carrego vivos na superfície das fotos desta primeira infância. 

De treze meses a três décadas, a manta desse bolor se nutre e se desenvolve, decompondo os laços cor-de-rosa cuidadosamente grudados com sabão no topo da minha cabeça. Sem forma definida, os filamentos desse fungo são como uma ligação sutil entre a morte e a vida que se abrem na velocidade desse corpo em transformação.

Já decidido que a casa precisava da chuva como uma fotografia precisa dos seus banhos de revelação, rego por semanas, sem resposta, incerto de que a semente enraíza, até que os brotos raiem no início da dia me perguntando: quais as condições para se revelar no mundo dessa maneira? Para entender a contingência daquilo que esqueço, nego e certamente ressurge sem tantos avisos? Para me dar conta de que tudo é mudança e de que não há quem suporte o peso dessas decisões sem o gosto de terra na boca? A espera pelos temporais estoura como bolsas de água sobre mim, encharcando o que ainda estava seco e soterrando o medo daquilo que desconheço” 

“Há sempre um meio entre o contato e a distância: um vidro, uma membrana, uma transparência, ar e água”. Em Papel chorados, Didi-Huberman deu destaque a camada que dá consistência a opacidade, uma espessura que é como as lágrimas que brotam nos olhos, tornando o ver turvado pelo chorar. Essa modificação consiste um novo gesto de interrogação no modo de perceber, relacionar e escrever o campo do desacontecimento entre a existência do ser que fala, que vê e chora, do corpo que é suporte desse desarranjo entre o acontecimento e sua vocalização, e ainda, do que disso se escreve, a posteriori. 

No caso de Mitsy, o borrão incidiu através da água das chuvas e dos fungos que fissuraram as já fragmentadas noções de identidade e pertencimento sustentadas por ele, figurando uma possível interrogação lida a partir da imagem borrada, através do Eu borrado, abrindo a possibilidade de outra escrita de si. No momento de desaparição da imagem pelo qual o sujeito toma como sua a verdade revelada, Mitsy elevou ao estatuto de monumento a infinitização de deformações contínuas no retrato, revelando as mais variadas amarrações, versões de existência através desses tempos de construção de um “si”. 

Para Jacques Lacan, o imaginário é o lugar onde qualquer verdade se enuncia, seja ela negada ou confessada. Tais verdades são deformáveis, pois são consistências  permeáveis a furos. Essa tessitura permite figurar a imagem da substância dessas nãotodas verdades e por isso situa seu valor. 

“A consistência imaginária, para o falasser é o que se fabrica e se inventa. (…) Assim que for traçado, figurado [o nó borromeano], qualquer um vê que é impossível que não permaneça o que ele é no Real um nó. O que se trança de Imaginário não deixa de ex-sistir, respondendo ao Real. (…) O ponto, a linha, é fomentada de uma ficção, bem como a superfície que só se sustenta da fenda, da quebradura especificada de ser de duas dimensões”. Algo dá o suporte para essas cordas de barbantes e precisamos reconhecer que é uma abstração fundamentada num risco de serrote, como segurar essa construção sem reencontrar a corda? (…) Definir essa superfície, na geometria, a que se imagina, que se sustentou essencialmente de um imaginário… é bem assim que se poderia defini-la, essa superfície, esse risco de serrote num sólido: é que oferece algo a borrar. É singular que a única forma com que cheguemos, em suma, a reproduzi-la – essa superfície ideal – seja justamente aquilo diante do que se recua, a saber, o trançado de uma tela, e que seja, em suma, numa tela que o pintor tenha de borrar, dado que é só o que ele encontra a fazer para domar o olhar – como expressei, em certo momento, o que ocorre com a função do pintor (…) É bem ai que se sente de forma peculiar isso que é esse nó, como se segura o nó borromeano com três… feito de dois nós independentes um do outro, e trata-se de saber por onde passa o terceiro para que faça nó.” (Lacan, 1974-75/2022, p. 147) 

Teria Mitsy concebido, com seu gesto inaugural diante dessa tripla tragédia (social, familiar e pessoal), um novo fio por onde tornar-se-ia possível nomear e escrever outra versão inaugural de sua existência? Ao acolher a mudança no estatuto da foto, transformando-a em um ‘nó equívoco’, ‘nó-borrão’, o artista constituiu um não-espaço de coabitação para a memória do acontecimento, para a morte de uma versão infantil e para vida que tomava corpo, fazendo vibrar incessantemente sua transformação. 

Nas palavras de Mitsy, “um corpo descansa à beira de sua vertigem depois dos banhos de revelação (…) como quem descansa às pressas um ovo quente debaixo da água corrente.” Como quem sabe que ainda é preciso fazer com o que fica borrado e ainda queima, posto que  “O falasser não é muito corriqueiro, é como o mofo, tem tendência à expansão” (Lacan, 1974-75/2022, p. 254). O que o mofo, por efeito, permite é a incidência de real, de simbólico e de imaginário para estruturar uma teia que escreve e figura o não apreensível como um enigma renovado diariamente, faça chuva ou faça sol. Porque uma experiência, ou um acontecimento, é nada mais do que o engajamento do falante em um enigma, do qual paga com palavras para nelas habitá-la. Assim, retorno finalmente aos “Fragmentos d’Um diário andarilho”, uma escrita de caso clínico que apresentou a conjectura de invenção de uma andarilha e sua herética habilidade de fabricação de seus objetos a partir de restos deixados por outros em seu caminho. Nesse tempo outro, será preciso recolher as transformações que estão a espera de serem lidas, mas agora não mais pela analisante que passou, mas por essa analista “caiada” – para usar o termo da andarilha, que escreve a vocês, ensaiando tecer outros caminhos para a escrita de casos finalizados, em mais um giro. 

Para citar o texto: ACCIOLY, A. (2024) Riscos de Serrote. Em: www.alineaccioly.com.br

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